segunda-feira, 4 de julho de 2022

Envelhecer e des-existir


Envelheceram enquanto eu des-existi. O livro que me oferecem, o prato que me oferecem, a casa que me oferecem, nada é meu, e eu não sou dessas coisas. Mas ao mesmo tempo sou. O imigrante é o Gato de Schrödinger, ele está ao mesmo tempo vivo e morto, faz e não faz parte do mundo que deixou. "Você não sabe como é que está isso aqui", dizem. Eles envelheceram, viveram a vida no tempo certo; eu des-existi, deixei de existir na realidade daqui, não estou mais na lista, "não sei como é". E dali, do outro lugar, nunca serei completamente. Mas ali tenho um lar e um (aparentemente) válido porquê que me convence a seguir.

Alguém disse que viver é correr em direção da morte. Parafraseio: Visitar o Brasil tem sido, desde o primeiro dia, viver em direção do portão de embarque. Desde que cheguei que vivo na iminência do dia da partida, e não era esse o plano. Quando encontro alguém, imagino quando verei esse alguém de novo, e o que perderei no espaço entre encontros, se houver novos encontros. Me lembrei do filme "Quando Você Viu Seu Pai Pela Última Vez?" (2007). Em janeiro de 2007, fazia pouco mais de dois anos. Parafraseio novamente: Quando você se sentiu parte pela última vez?

Eles envelheceram, eu des-existi: formas de transcendência, paralelas que só se encontrarão no infinito. E por quê? Porque a imigração rouba uma temporalidade, além de deixar o espaço vazio. Alguém que vive aqui não vive ao mesmo tempo ali. A presença não é levada a sério porque ela é referenciada por uma ausência.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O lugar importa? Questões em torno do surgimento do campo da literatura nórdica árabe

Este texto foi originalmente publicado em 3.8.2017 no Blog Multilingualit, que trata de literatura em línguas imigrantes (não-nórdicas) nos países nórdicos, em inglês:

https://multilingualit.wordpress.com/2017/08/03/does-the-place-matter/


Babel Hajjar, blogueiro, jornalista e pesquisador de mídia global escreve sobre a luta pela (re)conquista do poder das palavras após a perda da linguagem da geração anterior. O texto de Hajjar está relacionado ao relatório de Ahmed Al Nawas “Visão das Condições da Literatura Árabe na Região Nórdica” e aos comentários do professor Olli Löytty, apresentados na publicação do relatório de Al-Nawas. Somando sua experiência como membro da comunidade brasileiro-síria e como “duplo imigrante” brasileiro-sírio na Finlândia, Babel Hajjar escolhe uma das perguntas de Olli Löytty como ponto de partida para suas reflexões:


“O lugar importa? O que significa na prática se as “habilidades de língua e literatura árabes de um autor foram moldadas na diáspora?”. ”


Babel Hajjar:


Como qualquer mudança dura em nossas vidas, a Imigração é um processo que deixa suas marcas em quem passa por ele. Sendo brasileiro, filho de sírios - meu pai nasceu na Síria; minha mãe nasceu no Líbano, mas seus pais nasceram em uma cidade síria chamada Iskenderun que hoje é a Turquia - e morando na Finlândia sem nenhuma expectativa imediata de retorno, posso dizer que estou vivenciando minha segunda Imigração. Embora eu nunca tenha “migrado” para o Brasil - nasci lá - e me considerando verdadeiramente brasileira, não posso dizer que isso é tudo o que sou. Eu também sou sírio, mesmo que o processo de exílio dos meus pais tenha me tornado um sírio analfabeto em árabe. Meu pai e minha mãe com seus pais e irmãos se mudaram para o Brasil na década de 1950, forçados por motivos políticos. Eu vivi a realidade de ser de uma família síria e em muitos aspectos à margem da sociedade e da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, experimentei a quantidade de cultura síria que a vida dentro das comunidades árabe-brasileiras me permitiu.

A literatura produzida por falantes de árabe e seus filhos nas nações americanas não era necessariamente escrita em árabe e, mesmo assim, foi moldada por seu exílio. As iniciativas no Brasil para o ensino do árabe eram (são) poucas e nem sempre acessíveis, nem foram muito estimuladas por instituições brasileiras ou árabes, com raríssimas exceções. O Brasil, bem como muitos outros países com população multiétnica, na década de 1970 ou anteriormente, poucas vezes tinham por hábito incentivar os imigrantes a manterem sua cultura e língua. Os falantes de árabe que conseguiram ensinar árabe para seus filhos no Brasil realizaram tal feito por um esforço particular. Os livros escritos em árabe por populações árabes nas Américas não são sua principal produção literária. Claro, isso não os impediu de escrever. Gibran Khalil Gibran, Edward Said, Mahmud Darwish, Raduan Nassar, são alguns dos muitos exemplos da poesia, não-ficção e prosa produzidas pela diáspora árabe.

Por muitas razões, talvez custos e baixo consumo, os livros não foram a única forma de divulgação da literatura no Brasil. Imigrantes criaram jornais com notícias, poemas e assuntos relacionados a temas árabes de interesse, muitos deles estimulados pela Al Nahda - o Despertar Literário Árabe do século XIX que ocorreu no Egito e na Grande Síria devido a mudanças nas políticas culturais turcas para suas então colônias. Esses jornais eram uma forma de manter as comunidades árabes unidas no exterior e ligadas às suas pátrias, sendo alguns escritos em árabe, outros em português.

De onde eu vejo, não só o lugar, mas também o contexto importa muito. E por contexto quero dizer os lugares e o tempo da diáspora, ou melhor, os fatos que iniciaram um movimento migratório em cada país árabe, e os lugares que receberam diferentemente essas variadas comunidades. Embora o foco principal do projeto Culture for All sobre Multilinguismo seja a literatura nórdica escrita em línguas estrangeiras, uma eventual comparação entre a realidade da literatura diaspórica aqui e no mundo não poderia ser considerada completa se excluísse textos produzidos por árabes diaspóricos e seus filhos e filhas só porque não foram escritas em árabe, fato que se explica por muitas condições específicas, como mencionei.

O Prefácio de Jean-Paul Sartre a “Os Condenados da Terra”, de Franz Fanon, é dedicado a pensar as possibilidades dos colonizados falarem, escreverem, terem voz, uma vez que tenham substituído sua língua materna pela língua colonialista. Nessa discussão, Sartre, encharcado pelo pensamento de Fanon, pergunta se as ideias dos colonizados escritas em francês poderiam alcançar não apenas todo o mundo - como Frantz Fanon fez nos anos 1960 - mas agora, principalmente, as pessoas a quem elas dizem respeito. E as respostas de Sartre são sim, o povo colonizado poderia usar e transformar a língua francesa para torná-la percebida por seu próprio povo. Embora a ruptura seja difícil de sanar, a apropriação da língua colonial pelo povo colonizado não limita a expressão das ideias.

Mas pode-se argumentar que existem muitas diferenças entre os processos de Imigração e Colonização. Como comparar a colonização francesa da Argélia ou de outros lugares da África ou da América Latina com o movimento migrante e “espontâneo” de falantes de árabe de seus muitos países de origem para seus muitos destinos? É claro que existem diferenças importantes entre a diáspora de língua árabe no Brasil e outros países americanos dos séculos XIX e XX, e a história da migração para os países nórdicos. Tomando como exemplo Brasil e Finlândia, apesar de suas muitas diferenças, há em comum que os dois países abriram suas portas (em medida diferente, porém) para pessoas que precisavam de ajuda e cuidados, e não são os opressores. Mas essas pessoas foram expulsas de suas terras por poderes geopolíticos que impactaram severamente suas vidas. Eles foram violentamente expurgados - pela guerra ou por motivações econômicas - de seu guarda-chuva cultural, um lugar confortável onde sabiam se comportar, onde compartilhavam hábitos, um lugar com outras regras... e onde todos eram compreendidos! Não seria uma violência a necessidade de se aprender rapidamente novas línguas (quase sempre a do país e o inglês, a Língua Franca do nosso tempo)? Será que esse processo de destruição de pátrias e migração forçada é de fato muito diferente de uma imposição colonial de língua e cultura? Eu tendo a crer que não.

Os altos níveis de educação dos países nórdicos possibilitaram a conscientização sobre a importância de estimular os Refugiados a manter sua própria herança cultural e fazer seus filhos e filhas aprenderem sobre ela. A ascensão da literatura árabe-nórdica é o resultado desse nível de consciência que não é a norma em nosso planeta. Mesmo assim, parece-me que é apenas o início de um processo muito mais amplo que nos leva a mais perguntas: Por que a diáspora árabe acontece? É uma diáspora “árabe” ou vitimiza apenas alguns falantes de árabe? De onde veio cada escritor árabe que vivem aqui na Finlândia, Suécia ou Noruega? Seriam estas literaturas árabes similares ou se pronunciam a partir de perspectivas diferentes? Como categorizar sua produção literária?

O palestino Edward Said foi uma das vozes mais importantes da causa palestina e dos assuntos pós-coloniais. Seu conceito de orientalismo descreve como, nos últimos 200 anos ou mais, a Europa percebeu os “outros”, e como a ideia do “oriental”, principalmente dos sujeitos árabe-islâmicos, foi um contraponto criado pela civilização ocidental para reafirmarem a si próprios. Entre as críticas expressas por Said, a homogeneização e simplificação em relação aos “árabes” é (para mim) uma das suas teorias mais bem formuladas. Ele nos mostra que a imagem atual dos sujeitos árabe-islâmicos no Ocidente é uma distorção, mas que é utilizada como verdade.

O [conceito de] Orientalismo de Said contém em si ideias sobre Consenso e Hegemonia cultural de Antonio Gramsci, e do pensamento de Michel Foucault sobre poder e discurso, o qual apresenta o controle do discurso pela sociedade, a fim de diminuir ou confinar sua relevância. Para Foucault, a ciência como forma de obter a verdade (vontade de verdade) empurra disciplinas, como a literatura por exemplo, para o que é “crível” e “natural”. O discurso [predominante] sobre os árabes é dado exclusivamente pelo Ocidente, e está repleto de conceitos como sectarismo, fanatismo, violência, paixão ao invés de razão, entre outros que são tomados pela maioria como a verdade sobre uma população tão diversa.

E o que poderíamos fazer para evitar a homogeneização e simplificação da literatura árabe? Como ler um poema da diáspora palestina, uma narrativa síria pró-rebelde ou pró-governo, um romance sírio de oposição não-rebelde (sim, eles existem!), um texto iraquiano contra ou a favor de Saddam Hussein, uma garota da Arábia Saudita que quer andar de bicicleta, um cristão libanês relatando a queda de bombas em Beirute, ou um partidário do Hezbollah que sobreviveu ao Progrom de Sabra e Shatila?

Sim, acredito que o lugar importa, não só pelas questões nacionais. Trata-se de conhecer as diferentes razões por trás da escrita. Pessoalmente, estou convencido de que as iniciativas culturais implicam em responsabilidades políticas, e a oportunidade de assistir ao surgimento do campo da literatura árabe-nórdica é uma grande dessas grandes responsabilidades.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

DÚVIDAS FREQUENTES DOS PAIS E MÃES SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUÊS

 


DÚVIDAS FREQUENTES DOS PAIS E MÃES SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUÊS


O prazo para matrícula no curso de português como língua de herança / língua materna para o ano de 2021-2022 encerra no próximo dia 30 de abril, sexta-feira. A matrícula é automática para quem já está matriculado, mas para o restante, moradores de Espoo e Kauniainen, deverá ser feita pelo Wilma ou por formulário (no link abaixo). 

2021-2022 será meu 5o ano letivo como professor em Espoo, então posso dizer que acumulei alguma experiência sobre o assunto. Por isso, resolvi criar esta lista de perguntas frequentes, para ajudar os pais a se decidirem e também a argumentarem com seus filhos, o porquê de eles estudarem a língua de origem do pai e/ou da mãe ou, no caso das crianças que migraram, qual a importância da continuidade do estudo do seu idioma materno.



1 - Para quem se destina:

É um curso de português e de cultura lusófona, destinado a crianças do ensino fundamental filhas de brasileiros, portugueses, angolanos, moçambicanos e de outras nacionalidades lusófonas. Espoo aceita alunos de Kauniainen também.


2 -  Qual variante do português é ensinada: 

O professor é brasileiro (filho de Sírios que migraram nos anos 50 para o Brasil, por isso o nome diferente), portanto o português que uso para falar é o brasileiro, e não creio em falsear isso, não seria legítimo. Porém, eu sei da importância de os alunos de outras variantes poderem aprender as questões mais prementes, como o uso do TU e os pronomes relacionados; vocabulários específicos (autocarro/ônibus - telemóvel/celular - gelado/sorvete, etc.).  Para me ajudar com isso, busco conteúdos em áudio, vídeo e texto onde sejam utilizadas as variantes específicas da língua. Mas sempre, sempre, conto com os aportes e sugestões dos pais.


3 -  Por que a criança nascida na Finlândia deve aprender português?

O aprendizado da língua materna ou de herança não tem a ver apenas com falar o português, mas com a identidade. Não importa onde a criança nasça, parte de sua identidade está conectada com as suas raízes. Compartilhar essas raízes com parentes e outros falantes de português traz um tipo de satisfação interna muito preciosa. A ruptura com essas raízes, por outro lado, pode ser motivo de sentimentos como a inadequação. Minha experiência pessoal como filho de imigrantes Sírios no Brasil me mostrou muito disso que falo. Lá não existe um projeto governamental de ensino da língua de herança a estrangeiros, e por conta das circunstâncias eu pude aprender apenas o árabe falado dentro de casa. Acredito que esta experiência me ajude na conexão com meus alunos.


3 - Como é a distribuição de alunos por nacionalidade? 

Conforme levantamento feito no início do ano, temos cerca de 30% de alunos de origem portuguesa, e quase 70% de origem brasileira. Somente um aluno angolano foi matriculado este ano, e nenhum moçambicano ou de outras nacionalidades lusófonas.


4- Como é a distribuição por idade e nível? 

Espoo utiliza uma distribuição por idade, mas não por nível. O ensino fundamental (peruskoulu) é dividido em 1. - 6. anos e 7. - 9. anos. Na prática, é difícil conciliar as atividades dos alunos com os dias de aulas disponíveis, e muitas vezes temos alunos de 1.o ano com alunos do 7.o, o que é um dos maiores desafios pedagógicos que encontramos nesse tipo de ensino. No entanto, e por conta da pandemia ter nos obrigado a estarmos on-line desde março de 2020, foi possível separar melhor os grupos. Então, temos quatro turmas: uma de 1. e 2. anistas, uma de 3. - 4 anistas, uma de 4. - 6. anistas, e uma de 6. - 9. anistas. Eventualmente tenho alguns alunos em classes fora do seu perfil etário, mas são casos isolados. Quando necessário, entrego tarefas diferenciadas dentro da mesma sala.


5 - Há aulas para o Eskari (esikoulu/ pré escola)? 

Não haverá no próximo ano. Outros professores tiveram grupos de alunos do Eskari, mas este ano novos alunos só serão admitidos a partir do primeiro ano.


6 -  O que se espera dos pais dos alunos de português?

A participação ativa dos pais é fundamental para o sucesso das aulas de português como língua de herança. Eu espero que o aluno encontre em casa um ambiente que o estimule a falar, que o ajude a estudar, que crie oportunidades para o uso da língua. Espero também que os pais me corrijam quando eu estiver errado, especialmente aqueles que falam uma variante do português que não é a minha. Espero ainda que os pais tragam para a aula sua vivência pessoal: um feriado português ou angolano significativo ou então falar sobre uma dança, comida, roupa ou qualquer outra coisa que remeta à terra natal. Ainda, digo que vou tentar estimular seus filhos e filhas a perguntar a vocês o porquê de terem migrado, quem deixaram lá, como é o nome da cidade, estado, região de origem e, o que há por lá, como são as coisas. 


7 - O que se aprende nas aulas?

Por termos 1,5 hora por semana, eu tenho uma abordagem que visa estimular a curiosidade pela cultura, ao mesmo tempo que busca fornecer instrumentos para melhorar o nível de português que o estudante possui em si. Passaremos pelas classes de palavras (substantivo, verbo, adjetivo, etc.), por ortografia e os erros mais frequentes, pela pronúncia dos sons mais difíceis, como dígrafos e encontros consonantais, sons nasais, acentuação, etc. Eu busco focar no que vai trazer um incremento na qualidade do uso do idioma. Fazemos muitos exercícios de compreensão de áudio e texto, além de escrita e leitura. Como já foi dito, utilizo vídeos e áudios, mas também jogos educacionais, como o Kahoot, que é bem aceito pela maioria dos alunos como uma opção divertida de aprendizado.


8 - O ensino em 2021-2022 será presencial ou à distância?

Na realidade, por conta do Coronavírus não há ainda uma definição clara. O que posso afirmar que todas as opções estão sendo consideradas - ensino presencial, à distância e híbrido -  e Espoo está certamente preparada para qualquer um dos três. Os professores recebem treinamentos específicos, equipamento e possuem plataformas e softwares à disposição. Os alunos de Espoo possuem um e-mail próprio que permite o acesso a ambientes seguros. Utilizamos Google Classroom + Google Meet, além de uma gama variada de aplicativos educacionais que viabilizaram a continuidade do ensino depois de março de 2020. Durante este ano, os professores tiveram momentos em que puderam retornar ao ensino presencial, mas como os pais dos meus alunos preferiam, em sua enorme maioria, que ficássemos on-line, Espoo acatou sua decisão.


Outras dúvidas? Por favor, pergunte na postagem do Facebook!


quarta-feira, 4 de março de 2020

Laurice e Iskanderun


Laurice saiu ainda pequena de Iskanderun (Alexandretta), provícia do norte da Síria que fora tomada pelos turcos/dada pelos franceses, no final da década de 30, durante o protetorado francês na região após 500 anos de domínio pelo império otomano.

Selo de Iskandaron durante o protetorado francês.


Sua família, os Merhi, e a família do meu avô Yourhaki, os Fahed, eram da mesma região - aliás, meus avós são primos. Como eram católicos e a região fora dominada por turcos muçulmanos, saíram com a roupa do corpo e perderam suas casas e suas terras. Eram bastante influentes na região. De lá se refugiaram em um mosteiro próximo, onde trabalharam por um tempo em troca da hospedagem, e se dirigiram ao Líbano, para recomeçar a vida. Minha avó recomeçou a vida várias vezes, duas imigrações, 3 dos 7 filhos mortos por doenças infantis, um filho alguns meses em hospital após acidente de ônibus, várias crises familiares... tudo "ala dahra", nas costas dela. Minha avó é forte demais, a vida a fez assim. Ela sabe admirar o valor das coisas pequenas, das plantas que crescem em um jardim, talvez porque simbolizem a paciência necessária para se criar raízes, crescer, frutificar e florescer. Exímia cozinheira, contadora de histórias e jogadora de baralho (a famosa tranca, uma variante do buraco), Dona Laurice é o centro de nossa família, e sua força vem de sua sabedoria, adquirida em uma vida que daria um filme.

domingo, 17 de novembro de 2019

Uma identidade adormecida em Kontula

Centro de Kontula, em Helsinque. - Fonte: Wikipidia

Voltando do trabalho, atravesso os 500 metros que separam o metrô de Kontula, o bairro de Helsinque em que vivo, da minha casa. Kontula é um ostoskeskus, um centro de compras, com algumas lojas, mercados, restaurantes e bares, muitos bares. É quase um vilarejo, no subúrbio de Helsinque, e foi um dos primeiros destinos de imigrações na Finlândia, nos anos 70-80.

Ninguém me conhece em Kontula, ou ao menos raramente me cumprimentam. Eu já tentei fazer isso, do jeito que eu fazia nos bairros em que morei em São Paulo... mas aqui parece meio fora de propósito. Velhos amigos ou colegas de bar se cumprimentam. Um ou outro vizinho o cumprimenta com um aceno rápido. Atendentes de loja serão sempre simpáticos com você, mas nada mais. Em Kontula há várias "tribos": Finlandeses, Somalis, Russos, Romas, Iraquianos, os frequentadores do Pub X, do restaurante Y, os bêbados recorrentes... Mas eu não pertenço a nenhuma, e não sei se isso ocorre por que sou mais fechado aqui, ou se porque ninguém está nem ai. Sim, Iraquianos falam árabe, e eu falo algum árabe, portanto deveria haver alguma afinidade, certo? Nem sempre.

Em São Paulo, cresci dentro da "colônia" árabe paulistana, que até os anos 1990 era ainda majoritariamente Sírio-Libanesa e cristã, cenário que começa a mudar após a guerra civil libanesa (1975-1990). Mas em Kontula os árabes são outros. Em Kontula, eu sou outro. Se em São Paulo falar um pouco de árabe coloca você automaticamente dentro da comunidade Sírio-Libanesa, aqui em Helsinki, perante os falantes de árabe que conheci, isto me coloca como "outro". Eu sou um árabe que fala pouco árabe (e com sotaque do Líbano, pelo que me dizem), de origem cristã, que come falafel com tahine e não com molho de tomate... enfim, não sou o que se espera de um árabe por aqui.

Como dizia, eu voltava do trabalho, quando vi um comércio aberto, a barbearia de um iraquiano. Estamos no meio do Outono, e já está escuro. A barbearia está iluminada, o dono está de pé, e seus funcionários ao redor. Eu nunca havia visto aquele homem sorrir, muito menos me cumprimentar, apesar de eu passar em frente a ele todos os dias. Naquele dia, ele também não me cumprimentou, mas estava sorrindo. Contava algo, e parecia estar sendo admirado pelos que estavam ao seu redor. Isso me levou ao passado, imediatamente. A sensação de já ter visto a cena foi fortíssima. Meu pai, em sua loja, rodeado de pessoas que o ouviam falar. Excelente vendedor, excelente conselheiro, excelente pensador político... mas péssimo administrador - meu pai teve loja por três vezes. Suas lojas eram pontos de encontro de colegas, correligionários e outros que gostavam de ouvir-lo, o velho Hanna falar. Quem o ouvia se admirava com sua erudição, com a forma segura de colocar sua opinião. E seu rosto se iluminava, quando rodeado de pessoas, nem sempre seus amigos, mas sempre admiradores. Com o passar do tempo, aqueles que prestaram bastante atenção a seus conselhos comerciais foram em geral bem sucedidos, e seus negócios prosperaram. Eu prestei atenção, mas para fazer o oposto. Afinal, ele era meu pai, e eu tinha que provar que ele estava errado. Dediquei boa parte da minha juventude a esse fim. Não, ele não estava errado. Só que nem eu, nem ele queríamos a vida de quem "dá certo" no comércio. Não parecia a vida certa. Eu fiquei com outros ensinamentos dele, penso.

Voltei para casa com a viagem no tempo ainda em minha cabeça. Um tempo em que eu tinha mais certezas. Identidade? Filho de sírio (portanto imigrante, portanto um "brasileiro diferenciado" e por isso olhado com alguma admiração, algo exótico, "olha ele fala árabe", "olha as comidas que ele faz", "olha como ele conhece coisas do Oriente Médio"...  Edward Said, o pai do conceito de Orientalismo, nos ensina que o Oriente é uma invenção do Ocidente, é uma leitura ocidental sobre um povo que se quer controlar, que se quer colocar numa caixinha. O Orientalismo do olhar ocidental rotula o árabe como exótico, misterioso, nos diz que os homens são insinuantes com sua fala mansa, mulheres são sensuais e fazem a dança "do ventre", ou seja, da fertilidade... o cheiro de almíscar, os tecidos,  a bebida de anis, café com cardamomo e a pimenta síria - sim, algumas partes dessas projeções são até reais, mas o modo como são lidas pelo Ocidente é hiper-realista. Assim como a visão internacional do brasileiro alegre, bola na mão, samba no pé, caipirinha, praia, suor, feijoada... Enquanto não somos ameaça, somos desejo. Quando somos ameaça e desejo, somos desejo de morte. Mas sempre, sempre, somos projeções.

Faz algum tempo, desde que mudamos para Helsinque eu e minha família, que comecei a perceber que eu não preenchia o local social do árabe daqui... que é muito diferente do que eu entendia por "árabe" no Brasil - porque os árabes não são todos iguais, porque os tempos são outros e não são tempos de paz para os árabes (e sim, antes do 11/9 vivemos períodos longos em paz), porque o Brasil, com todos os seus problemas é um país que estabelece menos regras para aceitar um imigrante do que a Finlândia...

Também não sinto que preencho os requisitos básicos para ser lido na Finlândia como brasileiro - fora o domínio da língua. Não danço samba, forró, não gosto e nem entendo de futebol, não ensino capoeira, não tenho o corpo sarado, não conheço a Amazônia e fui pouco ao Nordeste, venho de uma cidade que tem quase três vezes a população da Finlândia inteira... e talvez aqui eu tenha resumido o estereótipo do "povo alegre e malemolente". Na Finlândia eu leciono português, mas esta não é minha primeira língua. Eu aprendi primeiro o árabe, e esqueci o árabe, e reaprendi parcialmente o árabe. De certa forma, por recomendações médicas, o aprendizado do árabe me foi negado, pois eu estava sendo alfabetizado em português e, supostamente, eu estava ficando gago por conta da sobreposição de línguas. A língua materna que eu mais aprendi foi o português, mas o árabe veio antes, parcial, em blocos não contínuos, fragmentado como as informações recuperadas de um disco de computador danificado. Mas aqui, sou lido como brasileiro, e essa leitura por vezes é turva. "É o melhor que dá pra fazer, chefia", diria um grande amigo meu. Eu tenho um emprego como professor de português, e amigos brasileiros que me dão algum senso de pertencimento. Mas é estranho, deixar uma identidade para trás, ou adormecida.

Podem achar que eu exagero, com a ideia de identidade adormecida/deixada para trás. Mas realmente acho que a sociedade finlandesa exige dos imigrantes, num acordo não explícito, uma versão suavizada de você mesmo. Em maior ou menor grau, todas as sociedades buscarão aculturar seus imigrantes. Mas penso que o Brasil deu, aos imigrantes que vieram antes dos meus pais, muita liberdade e oportunidades, exigindo menos em troca. Ser árabe no Brasil para mim, em certo sentido, foi muito fácil! Os primeiros sírio-libaneses abriram espaço e ascenderam socialmente, desfrutaram dos privilégios de serem "brancos" (ah sim, no Brasil árabes são brancos, mas na Europa... bem, são árabes, então não são brancos. Ser branco definitivamente não é só sobre a cor, e é muito comum brasileiros se chocarem - ou mesmo se ofenderem - ao não serem lidos como brancos fora do Brasil), construíram instituições como clubes, hospitais... fincaram o pé na terra. Em boa parte do território brasileiro, árabe é sinônimo de pessoa rica, bem sucedida, são comerciantes, médicos, políticos. Não de refugiados que perderam tudo. Em português do Brasil, ser imigrante é um valor maior para muitos do que ser da terra, algo difícil de entender, e mais ainda de explicar. Imigrantes são, para o mito fundador brasileiro, o povo convidado (por D. Pedro II, que visitou o Oriente Médio e Europa com este fim) a compor a malha social do país, ainda que os descendentes daqueles que se aventuraram ao exílio tenham se esquecido de que seus avós só emigraram de suas terras de origem por terem sido expulsos por alguém ou por problemas outros, diversos. Falei um pouco mais sobre a diferença entre imigrantes e refugiados aqui.

Mas há outra razão, que me remete à lojinha novamente: No Brasil em que cresci eu era filho, e estava sob a proteção da família. Ninguém me protegeu mais que meu pai, do contato tortuoso com o mundo, e ele o fez sem críticas - ele me criticava em muitas coisas, mas não quando o assunto era minha inadequação. Quando eu me sentia inadequado ao mundo em que me encontrava, ele ouvia e dava suporte e buscava me mostrar a naturalidade das coisas. Penso que ele tentava me proteger, da minha autodestruição, mas também do mundo ao redor. Ele dizia para eu não me preocupar, que as coisas caminhavam dentro do esperado. Sempre. Mesmo quando eu sabia que não era verdade. O que eu senti naquele dia em que passava em frente à lojinha foi que aterrissamos na Finlândia em queda livre, sem paraquedas, sem amortecimento, sem colchão, sem suporte de pai ou mãe que amenize o que há para ser amenizado. Contamos com a ajuda de muitos amigos, e amizade no exterior é algo que requer um texto dedicado. E temos uns aos outros, eu minha parceira e minha filha, mas agora eu sou o pai e o marido, minha filha começa a experimentar sua independência. Viemos ocupar outras identidades, outros locais sociais, diferentes daquelas que deixamos no Brasil.

E o que é a identidade? Nem sempre a identidade que esperamos ocupar é a que nos é oferecida pelo país que nos acolhe. Normalmente, o espaço que se quer encontra-se ocupado, ou é disputado com aqueles que já estavam lá. Em outras palavras, é mais fácil para um imigrante ingressar nos serviços  - de saúde, de limpeza, de turismo e atendimento - do que ser professor universitário ou acadêmico, por exemplo. Isto não quer dizer que não haja possibilidade de se realizarem seus desejos, mas que a sociedade vai direcioná-lo para os trabalhos mais necessários ao seu funcionamento, enquanto que as disputas pelos trabalhos mais desejados ou valorizados poderá ou não ser justa - ou "justiça" é um termo relativo. Diferente do que se imagina, o nacionalismo enquanto tradição europeia está muito mais arraigado por entre o senso comum do que se quer acreditar. Pessoas que se veem como progressistas e defensoras de coisas como "fim das fronteiras" e "integração dos povos" muitas vezes têm um senso de nacionalidade bastante exacerbado. Estudiosos procuram explicações, como neste artigo sobre a substituição do Estado de bem estar social pela marca nórdica.

Eu reluto em abandonar quem eu era, minha identidade de filho de imigrantes no Brasil, onde imigrantes são adorados, onde imigrantes ensinam a seus filhos que eles não são daquela terra que foram convidados a formar, mas de outro lugar para onde um dia hão de retornar. Eu reluto em deixar de lado, adormecida, uma identidade de forma alguma resolvida, para sobrepor outra. Aos 16, costumava fantasiar como minha vida seria aos 30 ou 40. Tenho 49, e embora me veja como uma pessoa que gosta de um desafio, há uma parte de mim que clama por estabilidade, do tipo "tenho todos os amigos de que necessito". Disseram-me que finlandeses eram assim, faziam suas amizades na escola e as levavam para a vida. Estável. Mas eu sinto que tenho que me misturar, e o que me impede é quem eu penso ser. Quem eu penso que sou?



terça-feira, 29 de outubro de 2019

Espero tua (re)volta: Como explicar o Brasil para o Mundo

Fonte: https://globofilmes.globo.com/filme/espero-tua-revolta/

Tive a oportunidade de assistir, dentro do festival de cinema latino-americano Cinemaissi (Cinemaissi.com), em Helsinque,  a um dos documentários mais impressionantes que vi recentemente sobre o Brasil, e este texto vem por esse motivo. Sou brasileiro, filho de sírios que se mudou para o Brasil nos anos 50, e moro na Finlândia com minha esposa e filha desde 2016. Busco trazer, portanto, uma perspectiva imigrante. Tento compreender e registrar, por meio deste blog e de outras pesquisas, a terra que deixei para trás, e a terra que tentamos abraçar como nova, mesmo que isto ainda seja incerto.

Viemos para a Finlândia alguns meses antes de a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sofrer um impeachment, como parte de um golpe civil. Desde então, estamos completamente sintonizados com a política brasileira, talvez até mesmo mais do que antes. De longe, assistimos ao impeachment de Dilma, à prisão do ex-presidente Lula (PT) e vimos o surgimento de extremistas de direita, que tomaram o poder no Estado brasileiro conduzindo uma campanha eleitoral envolta em suspeição - Pelo uso massivo de mensagens de WhatsApp para influenciar eleitores e pelo aporte de dinheiro ilícito (Caixa 2) de diversas fontes, dentre outros aspectos.

Após a eleição para a presidência de Jair Bolsonaro (PSL), o futuro do Brasil foi revestido de ceticismo. Desde que assumiu, este governo iniciou um projeto de desmonte do Estado: venda de estatais produtivas (em especial a do petróleo), reforma da previdência que na prática suspende o direito à aposentadoria, reforma trabalhista que libera a terceirização irresponsável do trabalhador, e descrédito do Brasil no cenário internacional. É um governo que representa uma direita nada nacionalista, que nem pode ser chamada de conservadora, pois sua agenda é a desconstrução. Defende um ultraliberalismo que não beneficia o empresariado local, mas apenas o capital internacional. Por meio de um discurso contraditório, cheio de furos, porém eficaz junto a certo público, Bolsonaro fez o espírito da direita sair do armário e correr livremente por todo o país: o agronegócio domina os campos e queima florestas; as empresas de mineração destroem a natureza e a vida humana sem quase pagar por isso; negros, mulheres e LGBT+ estão sob ataques fascistas nas ruas; pessoas periféricas negras e pobres são revistadas e mortas pela polícia militar regularmente; especulações imobiliárias queimam favelas e prédios de ocupações; o professor como profissional nunca valeu tão pouco; O pensamento religioso quebra a laicidade do Estado, o judiciário, politizado, rasga a constituição em suas clausulas pétreas, e o falso moralismo é a regra. E a lista de atrocidades não para.

Dito isto, há o excelente documentário Espero tua (Re) volta. Dirigido por Eliza Capai, este é um registro precioso e poderoso do movimento de estudantes secundaristas brasileiros entre 2013 (manifestações de junho / 2013) e 2018 (eleição de Jair Bolsonaro), um período certamente não escolhido ao acaso, pois marca o processo descrito acima, da guinada brasileira à direita.  A história é narrada por um grupo de estudantes do Estado de São Paulo (Lucas “Koka” Penteado, Marcela Jesus, Nayara Souza) cuja participação nos eventos retratados foi central. O documentário enfatiza os acontecimentos de 2015, quando estudantes de escolas públicas enfrentaram a decisão do governador Geraldo Alckmin (PSDB) de "reformar" o sistema de educação, começando por fechar escolas e realocar alunos. Os alunos-narradores revisitam as várias manifestações de que participaram, e mostram como o poder, representado pela polícia e pelos políticos, recebeu seus protestos. É co-adjuvante e digna de nota a atuação repressiva da polícia durante essas manifestações, ou mesmo fora delas, no cotidiano dos alunos, majoritariamente negros, pobres e moradores de bairros periféricos de São Paulo, e que frequentam as escolas públicas ameaçadas de fechamento.
O filme nos mostra também o quão descuidada é a educação pública do ensino médio no Brasil, com prédios que nunca foram renovados desde sua construção, a carência de material educacional, professores que faltam às aulas e até falta de comida nos restaurantes das escolas.

Espero tua  (re)volta é um filme sobre desigualdades. E como explicar tais desigualdades a alunos do ensino médio finlandês, aplaudido como o melhor sistema educacional na sociedade mais feliz do mundo, que o governador de um estado maior que a Finlândia estava preocupado com sua própria campanha eleitoral (como sugerido no filme) e que para tanto tinha um projeto que diminuiria o número de escolas? Como explicar a alguém que aqueles manifestantes pacificamente menores de idade estavam sendo espancados e reprimidos por bombas de gás lacrimogêneo? A um certo ponto do documentário, um dos narradores nos informa que o custo de cada bomba de gás lacrimogêneo pode comprar cerca de 500 "merendas", o almoço servido nas escolas e, toda vez que uma bomba explode, ele contabiliza "mais 500 merendas que se vão". É importante dizer que servir comida em escolas públicas no Brasil é alimentar uma população de crianças que geralmente não comem bem, ou não comem nada, em suas casas. Para muitas dessas crianças, a merenda é a RAZÃO pela qual vão à escola. E então ouvimos falar de um "escândalo da merenda" envolvendo o mesmo governador duas vezes eleito de São Paulo. As escolas estavam recebendo muito menos alimentos ou menos alimentos de qualidade, enquanto o dinheiro estaria sendo desviado... como explicar isso ao mundo, que nós no Brasil somos capazes de eleger e reeleger vilões? Como explicar a desigualdade brasileira para o mundo?

O ápice do filme é a ocupação de escolas que foram ameaçadas de serem desativadas pela reforma do sistema educacional do governador Geraldo Alckimin. Entre outubro e dezembro de 2015, mais de 200 escolas foram ocupadas por estudantes no estado de São Paulo. Durante as ocupações, os estudantes se organizaram democraticamente para decidir tudo: limpeza, culinária, manifestações dentro e fora da escola, comunicados à imprensa, cumprimento ou não de ordens judiciais. A organização também levou os alunos a criarem grupos de discussão sobre questões relevantes como sexualidade, racismo, feminismo, LGBT+, além de aulas púbicas. Enquanto isso, a opinião pública de São Paulo e do Brasil estava dividida. Quem era contra as ocupações, incluindo muitos dos grandes meios de comunicação, costumava chamar o ato de ocupar uma escola pública de "invasão", termo que revela quão baixa é a conscientização no Brasil sobre o que é público e o que é privado. A quem pertence a escola pública? Uma invasão só é possível quando o local invadido não pertence ao invasor. No Brasil, a árdua luta contra a privatização da coisa pública começa pela descolonização das mentes.

Espero sua (re)volta provocou uma reação emocional forte em mim - eu chorei, durante a exibição. Talvez porque eu esteja longe de casa, e eu tenha visto minha casa sendo destruída por políticos ruins. Talvez tenha sido uma resposta empática, ao sentir a dor da pobreza institucional e material que um Estado como o Brasil, cheio de riquezas naturais, impõe aos seus filhos-cidadãos em formação. Creio porém que a razão foi outra. Morando na Finlândia, vejo que aqui a igualdade é uma política de Estado. Sinto que fui capaz de me colocar na pele de um dos estudantes finlandeses do ensino médio com quem dividi a sala de projeção - era uma sessão aberta a escolas. Neste papel de estudante finlandês, imaginei-me não sendo capaz de conceber as vulnerabilidades das crianças mostradas no filme. "Lutar por centavos na passagem? Por salas de aula? Por merenda escolar? Quem precisa fazer isso?" E eu os invejei por não saberem para o que estavam olhando, como analfabetos funcionais que sabem ler mas não entendem o significado das palavras. E os invejei, realmente torcendo para eu estar errado em meus preconceitos.
Sempre penso que, se as coisas fossem diferentes no Brasil, se as oportunidades não fossem tão escassas, se os contras não fossem maiores do que os prós, não teríamos, eu e minha família, nos aventurado a migrar para a Finlândia. Mas... se o Brasil tivesse feito isso, não seria mais o velho Brasil... Seria outra coisa. Mas quer o Brasil ser outra coisa?


Espero sua (re)volta
Diretora: Eliza Capai
País: Brasil
Ano: 2018
Duração: 93
Gênero: Documentário
Temas: Revolução Juvenil, Realismo Social, Direitos Humanos, Política
Línguas: Português
Legendas: inglês
idade: 12 anos
Contato e exibições gratuítas para grupos: http://www.taturanamobi.com.br

Há uma versão em inglês deste artigo em https://medium.com.


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Expatriados, Imigrantes, Exilados ou Refugiados?

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Eu não gosto do termo "expatriado" (em inglês se usa o termo abreviado, "expat"). Embora o uso se aplique, via de regra, àqueles indivíduos que foram morar em outro país com um contrato de trabalho, o termo parece supor então que um dia esse contrato acabará e então eles retornarão... e a vida não é tão simples assim e nem sempre segue nossos planos ou mesmo aquilo que foi escrito em contrato.
Se analisarmos a palavra "expatriado" por sua etimologia e por alguns sinônimos, ele significa "fora da pátria", ou então "desterrado". Na minha opinião pessoal, "expatriado" é um termo que  serve para não misturar aquele que migrou por vontade própria dos que vieram forçosamente, como "refugiados". Me parece uma distinção de classe (Ora, e por que não podemos fazer essa distinção? Claro que pode, leitor, e eu posso seguir com minhas conjecturas e suposições acerca do assunto).
Penso que essa distinção acaba por não representar muita coisa, tanto para aqueles que você deixou no país de origem, quanto para os seus novos anfitriões. Talvez tenha significado mais forte dentro do seleto grupo de pessoas que viam a necessidade de se marcar essa diferença. Veja, você migrou. Por vezes veio com um esposo ou esposa, e com filhos. O seu contrato de trabalho por tempo determinado pode virar um contrato permanente, ou seja, a sua relação com o novo país, bem como a dos que dependem de você acaba sendo indeterminada. Sua esposa ou esposo terão que fazer algo no país, se não quiserem sofrer de um sentimento de inutilidade profundo. Enquanto aquele que é o motivo da imigração vai trabalhar, ou estudar, cumprindo suas tarefas e planos de vida, os acompanhantes tiveram, via de regra, que se replanejar, quando isso se fez possível. Muitas horas de solidão e reflexão se passarão até que esse estado de coisas mude para o acompanhante, e ele consiga uma vida própria no país.
E os filhos? Ah, "criança se adapta"? Os filhos, por não terem condições de fazer diferente ou mesmo de dizer "não", simplesmente migram com os pais. No processo, deixaram vida social, avós, tios, primos, descobrem-se num novo mundo, numa nova escola em que a língua lhes é muitas vezes hostil e, para sobreviverem, terão que se adaptar. É um processo complexo, que às vezes compromete até mesmo o aprendizado da língua "materna". Voltar, se e quando isto estiver em questão, será uma outra ruptura (Sobre crianças e língua de herança, pretendo retornar em outro post e expor  um pouco da minha vivência como professor de português para filhos de lusófonos).
Falando do "Imigrante", aquele que migrou de fora para dentro do país, é termo que, ao menos no português brasileiro, está envolto em uma mística. Novamente, carrega uma distinção de classe, pois no Brasil temos a ideia de que estas pessoas foram "convidadas" a integrarem a mão de obra das fazendas e depois das fábricas nascentes, isto sendo justificado por supostamente ser a mão de obra "brasileira", "menos eficaz" - hoje sabemos que tratou-se de um processo deliberado de branqueamento da população negra marginalizada brasileira, seguindo lógicas eugenistas em voga na academia europeia. No Brasil, as epopeias das diversas comunidades imigrantes ainda são, em geral, mais valorizadas do que as raízes brasileiras e africanas da nossa população mais pobre.
Talvez o termo mais complexo aqui seja "Exilado". O "exilado" é um "migrante"? Sem dúvida. O "expatriado" é um "exilado"? Não vejo como não sê-lo. O exílio tem, a princípio, uma conotação política forte. São aqueles que foram mandados embora da terra. Significa, etimologicamente, exatamente o mesmo que "expatriado": "Desterrado". No entanto, pelo uso comum, foi "exilado" aquele a quem o governo convidou a se retirar. Ele perdeu sua nação e o direito de nela viver. É uma violência política que priva o ser humano do que há de mais básico, pátria e cidadania - embora muitas nações cultivem não-cidadãos dentro de suas próprias fronteiras, tratando-os como seres de segunda categoria. Muitos, mesmo sendo cidadãos no papel, não o são na prática, posto que seus direitos não existem para além da lei escrita.
Ocorre que eu posso me auto-exilar, e é isto o que fez um expatriado. Ele optou por não viver mais em uma sociedade que, de alguma forma, o limitava. No entanto, ele respirava essa sociedade. Fora dela, ele poderá fingir por algum tempo que é uma outra coisa, justificar que "veio de outro berço", que tem desejos próprios, distintos da massa de seu país... Em dado momento, se imaginará adaptado, quase como um local. Mas tremerá, sempre, ainda que baixinho, ao som de uma cuíca.
Penso que nós, eu e minha família, nos auto-impusemos um exílio. Não sabemos quando e se vamos voltar. Nosso país não nos mandou diretamente para fora, mas nossos sonhos, aquilo que acreditávamos que um dia poderíamos ser, parecia ser muito mais difícil de se cumprir no Brasil, em especial após o golpe de 2016. Não sei se nos realizaremos aqui. Mas há, ao que parece, um espaço maior para o sonho. Se esse espaço existisse no Brasil, não creio que teríamos vindo para a Finlândia.
Quanto ao termo "refugiado", é também uma palavra com conotação política... e bem atual. Refugiado é quem buscou refúgio, pois não tinha as condições, em sua terra natal, de viver dignamente. Acredito que esta linha seja bastante difícil de traçar, quando sua vida perdeu certa dignidade. Nos acostumamos com tudo, até com a perda de um membro do corpo. Talvez quando um brasileiro ou brasileira aceita se casar e se mudar com um finlandês ou finlandesa, apesar da língua e da diferença cultural abismal, eles não são considerados refugiados. Mesmo muitas vezes terem vindo, muitas vezes, de regiões do Brasil onde a vida pode ser intolerável. Talvez nós buscássemos refúgio de certas oscilações em nossa vida.  Refugiar-se também pode ser correr antes da tempestade, ou antes do intolerável.
A minha conclusão é que migrar, por mais que seja algo que o ser humano faz desde o início dos tempos, não é preciso. Pelo contrário, é um mergulho no desconhecido.