segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O lugar importa? Questões em torno do surgimento do campo da literatura nórdica árabe

Este texto foi originalmente publicado em 3.8.2017 no Blog Multilingualit, que trata de literatura em línguas imigrantes (não-nórdicas) nos países nórdicos, em inglês:

https://multilingualit.wordpress.com/2017/08/03/does-the-place-matter/


Babel Hajjar, blogueiro, jornalista e pesquisador de mídia global escreve sobre a luta pela (re)conquista do poder das palavras após a perda da linguagem da geração anterior. O texto de Hajjar está relacionado ao relatório de Ahmed Al Nawas “Visão das Condições da Literatura Árabe na Região Nórdica” e aos comentários do professor Olli Löytty, apresentados na publicação do relatório de Al-Nawas. Somando sua experiência como membro da comunidade brasileiro-síria e como “duplo imigrante” brasileiro-sírio na Finlândia, Babel Hajjar escolhe uma das perguntas de Olli Löytty como ponto de partida para suas reflexões:


“O lugar importa? O que significa na prática se as “habilidades de língua e literatura árabes de um autor foram moldadas na diáspora?”. ”


Babel Hajjar:


Como qualquer mudança dura em nossas vidas, a Imigração é um processo que deixa suas marcas em quem passa por ele. Sendo brasileiro, filho de sírios - meu pai nasceu na Síria; minha mãe nasceu no Líbano, mas seus pais nasceram em uma cidade síria chamada Iskenderun que hoje é a Turquia - e morando na Finlândia sem nenhuma expectativa imediata de retorno, posso dizer que estou vivenciando minha segunda Imigração. Embora eu nunca tenha “migrado” para o Brasil - nasci lá - e me considerando verdadeiramente brasileira, não posso dizer que isso é tudo o que sou. Eu também sou sírio, mesmo que o processo de exílio dos meus pais tenha me tornado um sírio analfabeto em árabe. Meu pai e minha mãe com seus pais e irmãos se mudaram para o Brasil na década de 1950, forçados por motivos políticos. Eu vivi a realidade de ser de uma família síria e em muitos aspectos à margem da sociedade e da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, experimentei a quantidade de cultura síria que a vida dentro das comunidades árabe-brasileiras me permitiu.

A literatura produzida por falantes de árabe e seus filhos nas nações americanas não era necessariamente escrita em árabe e, mesmo assim, foi moldada por seu exílio. As iniciativas no Brasil para o ensino do árabe eram (são) poucas e nem sempre acessíveis, nem foram muito estimuladas por instituições brasileiras ou árabes, com raríssimas exceções. O Brasil, bem como muitos outros países com população multiétnica, na década de 1970 ou anteriormente, poucas vezes tinham por hábito incentivar os imigrantes a manterem sua cultura e língua. Os falantes de árabe que conseguiram ensinar árabe para seus filhos no Brasil realizaram tal feito por um esforço particular. Os livros escritos em árabe por populações árabes nas Américas não são sua principal produção literária. Claro, isso não os impediu de escrever. Gibran Khalil Gibran, Edward Said, Mahmud Darwish, Raduan Nassar, são alguns dos muitos exemplos da poesia, não-ficção e prosa produzidas pela diáspora árabe.

Por muitas razões, talvez custos e baixo consumo, os livros não foram a única forma de divulgação da literatura no Brasil. Imigrantes criaram jornais com notícias, poemas e assuntos relacionados a temas árabes de interesse, muitos deles estimulados pela Al Nahda - o Despertar Literário Árabe do século XIX que ocorreu no Egito e na Grande Síria devido a mudanças nas políticas culturais turcas para suas então colônias. Esses jornais eram uma forma de manter as comunidades árabes unidas no exterior e ligadas às suas pátrias, sendo alguns escritos em árabe, outros em português.

De onde eu vejo, não só o lugar, mas também o contexto importa muito. E por contexto quero dizer os lugares e o tempo da diáspora, ou melhor, os fatos que iniciaram um movimento migratório em cada país árabe, e os lugares que receberam diferentemente essas variadas comunidades. Embora o foco principal do projeto Culture for All sobre Multilinguismo seja a literatura nórdica escrita em línguas estrangeiras, uma eventual comparação entre a realidade da literatura diaspórica aqui e no mundo não poderia ser considerada completa se excluísse textos produzidos por árabes diaspóricos e seus filhos e filhas só porque não foram escritas em árabe, fato que se explica por muitas condições específicas, como mencionei.

O Prefácio de Jean-Paul Sartre a “Os Condenados da Terra”, de Franz Fanon, é dedicado a pensar as possibilidades dos colonizados falarem, escreverem, terem voz, uma vez que tenham substituído sua língua materna pela língua colonialista. Nessa discussão, Sartre, encharcado pelo pensamento de Fanon, pergunta se as ideias dos colonizados escritas em francês poderiam alcançar não apenas todo o mundo - como Frantz Fanon fez nos anos 1960 - mas agora, principalmente, as pessoas a quem elas dizem respeito. E as respostas de Sartre são sim, o povo colonizado poderia usar e transformar a língua francesa para torná-la percebida por seu próprio povo. Embora a ruptura seja difícil de sanar, a apropriação da língua colonial pelo povo colonizado não limita a expressão das ideias.

Mas pode-se argumentar que existem muitas diferenças entre os processos de Imigração e Colonização. Como comparar a colonização francesa da Argélia ou de outros lugares da África ou da América Latina com o movimento migrante e “espontâneo” de falantes de árabe de seus muitos países de origem para seus muitos destinos? É claro que existem diferenças importantes entre a diáspora de língua árabe no Brasil e outros países americanos dos séculos XIX e XX, e a história da migração para os países nórdicos. Tomando como exemplo Brasil e Finlândia, apesar de suas muitas diferenças, há em comum que os dois países abriram suas portas (em medida diferente, porém) para pessoas que precisavam de ajuda e cuidados, e não são os opressores. Mas essas pessoas foram expulsas de suas terras por poderes geopolíticos que impactaram severamente suas vidas. Eles foram violentamente expurgados - pela guerra ou por motivações econômicas - de seu guarda-chuva cultural, um lugar confortável onde sabiam se comportar, onde compartilhavam hábitos, um lugar com outras regras... e onde todos eram compreendidos! Não seria uma violência a necessidade de se aprender rapidamente novas línguas (quase sempre a do país e o inglês, a Língua Franca do nosso tempo)? Será que esse processo de destruição de pátrias e migração forçada é de fato muito diferente de uma imposição colonial de língua e cultura? Eu tendo a crer que não.

Os altos níveis de educação dos países nórdicos possibilitaram a conscientização sobre a importância de estimular os Refugiados a manter sua própria herança cultural e fazer seus filhos e filhas aprenderem sobre ela. A ascensão da literatura árabe-nórdica é o resultado desse nível de consciência que não é a norma em nosso planeta. Mesmo assim, parece-me que é apenas o início de um processo muito mais amplo que nos leva a mais perguntas: Por que a diáspora árabe acontece? É uma diáspora “árabe” ou vitimiza apenas alguns falantes de árabe? De onde veio cada escritor árabe que vivem aqui na Finlândia, Suécia ou Noruega? Seriam estas literaturas árabes similares ou se pronunciam a partir de perspectivas diferentes? Como categorizar sua produção literária?

O palestino Edward Said foi uma das vozes mais importantes da causa palestina e dos assuntos pós-coloniais. Seu conceito de orientalismo descreve como, nos últimos 200 anos ou mais, a Europa percebeu os “outros”, e como a ideia do “oriental”, principalmente dos sujeitos árabe-islâmicos, foi um contraponto criado pela civilização ocidental para reafirmarem a si próprios. Entre as críticas expressas por Said, a homogeneização e simplificação em relação aos “árabes” é (para mim) uma das suas teorias mais bem formuladas. Ele nos mostra que a imagem atual dos sujeitos árabe-islâmicos no Ocidente é uma distorção, mas que é utilizada como verdade.

O [conceito de] Orientalismo de Said contém em si ideias sobre Consenso e Hegemonia cultural de Antonio Gramsci, e do pensamento de Michel Foucault sobre poder e discurso, o qual apresenta o controle do discurso pela sociedade, a fim de diminuir ou confinar sua relevância. Para Foucault, a ciência como forma de obter a verdade (vontade de verdade) empurra disciplinas, como a literatura por exemplo, para o que é “crível” e “natural”. O discurso [predominante] sobre os árabes é dado exclusivamente pelo Ocidente, e está repleto de conceitos como sectarismo, fanatismo, violência, paixão ao invés de razão, entre outros que são tomados pela maioria como a verdade sobre uma população tão diversa.

E o que poderíamos fazer para evitar a homogeneização e simplificação da literatura árabe? Como ler um poema da diáspora palestina, uma narrativa síria pró-rebelde ou pró-governo, um romance sírio de oposição não-rebelde (sim, eles existem!), um texto iraquiano contra ou a favor de Saddam Hussein, uma garota da Arábia Saudita que quer andar de bicicleta, um cristão libanês relatando a queda de bombas em Beirute, ou um partidário do Hezbollah que sobreviveu ao Progrom de Sabra e Shatila?

Sim, acredito que o lugar importa, não só pelas questões nacionais. Trata-se de conhecer as diferentes razões por trás da escrita. Pessoalmente, estou convencido de que as iniciativas culturais implicam em responsabilidades políticas, e a oportunidade de assistir ao surgimento do campo da literatura árabe-nórdica é uma grande dessas grandes responsabilidades.

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