terça-feira, 29 de outubro de 2019

Espero tua (re)volta: Como explicar o Brasil para o Mundo

Fonte: https://globofilmes.globo.com/filme/espero-tua-revolta/

Tive a oportunidade de assistir, dentro do festival de cinema latino-americano Cinemaissi (Cinemaissi.com), em Helsinque,  a um dos documentários mais impressionantes que vi recentemente sobre o Brasil, e este texto vem por esse motivo. Sou brasileiro, filho de sírios que se mudou para o Brasil nos anos 50, e moro na Finlândia com minha esposa e filha desde 2016. Busco trazer, portanto, uma perspectiva imigrante. Tento compreender e registrar, por meio deste blog e de outras pesquisas, a terra que deixei para trás, e a terra que tentamos abraçar como nova, mesmo que isto ainda seja incerto.

Viemos para a Finlândia alguns meses antes de a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sofrer um impeachment, como parte de um golpe civil. Desde então, estamos completamente sintonizados com a política brasileira, talvez até mesmo mais do que antes. De longe, assistimos ao impeachment de Dilma, à prisão do ex-presidente Lula (PT) e vimos o surgimento de extremistas de direita, que tomaram o poder no Estado brasileiro conduzindo uma campanha eleitoral envolta em suspeição - Pelo uso massivo de mensagens de WhatsApp para influenciar eleitores e pelo aporte de dinheiro ilícito (Caixa 2) de diversas fontes, dentre outros aspectos.

Após a eleição para a presidência de Jair Bolsonaro (PSL), o futuro do Brasil foi revestido de ceticismo. Desde que assumiu, este governo iniciou um projeto de desmonte do Estado: venda de estatais produtivas (em especial a do petróleo), reforma da previdência que na prática suspende o direito à aposentadoria, reforma trabalhista que libera a terceirização irresponsável do trabalhador, e descrédito do Brasil no cenário internacional. É um governo que representa uma direita nada nacionalista, que nem pode ser chamada de conservadora, pois sua agenda é a desconstrução. Defende um ultraliberalismo que não beneficia o empresariado local, mas apenas o capital internacional. Por meio de um discurso contraditório, cheio de furos, porém eficaz junto a certo público, Bolsonaro fez o espírito da direita sair do armário e correr livremente por todo o país: o agronegócio domina os campos e queima florestas; as empresas de mineração destroem a natureza e a vida humana sem quase pagar por isso; negros, mulheres e LGBT+ estão sob ataques fascistas nas ruas; pessoas periféricas negras e pobres são revistadas e mortas pela polícia militar regularmente; especulações imobiliárias queimam favelas e prédios de ocupações; o professor como profissional nunca valeu tão pouco; O pensamento religioso quebra a laicidade do Estado, o judiciário, politizado, rasga a constituição em suas clausulas pétreas, e o falso moralismo é a regra. E a lista de atrocidades não para.

Dito isto, há o excelente documentário Espero tua (Re) volta. Dirigido por Eliza Capai, este é um registro precioso e poderoso do movimento de estudantes secundaristas brasileiros entre 2013 (manifestações de junho / 2013) e 2018 (eleição de Jair Bolsonaro), um período certamente não escolhido ao acaso, pois marca o processo descrito acima, da guinada brasileira à direita.  A história é narrada por um grupo de estudantes do Estado de São Paulo (Lucas “Koka” Penteado, Marcela Jesus, Nayara Souza) cuja participação nos eventos retratados foi central. O documentário enfatiza os acontecimentos de 2015, quando estudantes de escolas públicas enfrentaram a decisão do governador Geraldo Alckmin (PSDB) de "reformar" o sistema de educação, começando por fechar escolas e realocar alunos. Os alunos-narradores revisitam as várias manifestações de que participaram, e mostram como o poder, representado pela polícia e pelos políticos, recebeu seus protestos. É co-adjuvante e digna de nota a atuação repressiva da polícia durante essas manifestações, ou mesmo fora delas, no cotidiano dos alunos, majoritariamente negros, pobres e moradores de bairros periféricos de São Paulo, e que frequentam as escolas públicas ameaçadas de fechamento.
O filme nos mostra também o quão descuidada é a educação pública do ensino médio no Brasil, com prédios que nunca foram renovados desde sua construção, a carência de material educacional, professores que faltam às aulas e até falta de comida nos restaurantes das escolas.

Espero tua  (re)volta é um filme sobre desigualdades. E como explicar tais desigualdades a alunos do ensino médio finlandês, aplaudido como o melhor sistema educacional na sociedade mais feliz do mundo, que o governador de um estado maior que a Finlândia estava preocupado com sua própria campanha eleitoral (como sugerido no filme) e que para tanto tinha um projeto que diminuiria o número de escolas? Como explicar a alguém que aqueles manifestantes pacificamente menores de idade estavam sendo espancados e reprimidos por bombas de gás lacrimogêneo? A um certo ponto do documentário, um dos narradores nos informa que o custo de cada bomba de gás lacrimogêneo pode comprar cerca de 500 "merendas", o almoço servido nas escolas e, toda vez que uma bomba explode, ele contabiliza "mais 500 merendas que se vão". É importante dizer que servir comida em escolas públicas no Brasil é alimentar uma população de crianças que geralmente não comem bem, ou não comem nada, em suas casas. Para muitas dessas crianças, a merenda é a RAZÃO pela qual vão à escola. E então ouvimos falar de um "escândalo da merenda" envolvendo o mesmo governador duas vezes eleito de São Paulo. As escolas estavam recebendo muito menos alimentos ou menos alimentos de qualidade, enquanto o dinheiro estaria sendo desviado... como explicar isso ao mundo, que nós no Brasil somos capazes de eleger e reeleger vilões? Como explicar a desigualdade brasileira para o mundo?

O ápice do filme é a ocupação de escolas que foram ameaçadas de serem desativadas pela reforma do sistema educacional do governador Geraldo Alckimin. Entre outubro e dezembro de 2015, mais de 200 escolas foram ocupadas por estudantes no estado de São Paulo. Durante as ocupações, os estudantes se organizaram democraticamente para decidir tudo: limpeza, culinária, manifestações dentro e fora da escola, comunicados à imprensa, cumprimento ou não de ordens judiciais. A organização também levou os alunos a criarem grupos de discussão sobre questões relevantes como sexualidade, racismo, feminismo, LGBT+, além de aulas púbicas. Enquanto isso, a opinião pública de São Paulo e do Brasil estava dividida. Quem era contra as ocupações, incluindo muitos dos grandes meios de comunicação, costumava chamar o ato de ocupar uma escola pública de "invasão", termo que revela quão baixa é a conscientização no Brasil sobre o que é público e o que é privado. A quem pertence a escola pública? Uma invasão só é possível quando o local invadido não pertence ao invasor. No Brasil, a árdua luta contra a privatização da coisa pública começa pela descolonização das mentes.

Espero sua (re)volta provocou uma reação emocional forte em mim - eu chorei, durante a exibição. Talvez porque eu esteja longe de casa, e eu tenha visto minha casa sendo destruída por políticos ruins. Talvez tenha sido uma resposta empática, ao sentir a dor da pobreza institucional e material que um Estado como o Brasil, cheio de riquezas naturais, impõe aos seus filhos-cidadãos em formação. Creio porém que a razão foi outra. Morando na Finlândia, vejo que aqui a igualdade é uma política de Estado. Sinto que fui capaz de me colocar na pele de um dos estudantes finlandeses do ensino médio com quem dividi a sala de projeção - era uma sessão aberta a escolas. Neste papel de estudante finlandês, imaginei-me não sendo capaz de conceber as vulnerabilidades das crianças mostradas no filme. "Lutar por centavos na passagem? Por salas de aula? Por merenda escolar? Quem precisa fazer isso?" E eu os invejei por não saberem para o que estavam olhando, como analfabetos funcionais que sabem ler mas não entendem o significado das palavras. E os invejei, realmente torcendo para eu estar errado em meus preconceitos.
Sempre penso que, se as coisas fossem diferentes no Brasil, se as oportunidades não fossem tão escassas, se os contras não fossem maiores do que os prós, não teríamos, eu e minha família, nos aventurado a migrar para a Finlândia. Mas... se o Brasil tivesse feito isso, não seria mais o velho Brasil... Seria outra coisa. Mas quer o Brasil ser outra coisa?


Espero sua (re)volta
Diretora: Eliza Capai
País: Brasil
Ano: 2018
Duração: 93
Gênero: Documentário
Temas: Revolução Juvenil, Realismo Social, Direitos Humanos, Política
Línguas: Português
Legendas: inglês
idade: 12 anos
Contato e exibições gratuítas para grupos: http://www.taturanamobi.com.br

Há uma versão em inglês deste artigo em https://medium.com.