quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Expatriados, Imigrantes, Exilados ou Refugiados?

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Eu não gosto do termo "expatriado" (em inglês se usa o termo abreviado, "expat"). Embora o uso se aplique, via de regra, àqueles indivíduos que foram morar em outro país com um contrato de trabalho, o termo parece supor então que um dia esse contrato acabará e então eles retornarão... e a vida não é tão simples assim e nem sempre segue nossos planos ou mesmo aquilo que foi escrito em contrato.
Se analisarmos a palavra "expatriado" por sua etimologia e por alguns sinônimos, ele significa "fora da pátria", ou então "desterrado". Na minha opinião pessoal, "expatriado" é um termo que  serve para não misturar aquele que migrou por vontade própria dos que vieram forçosamente, como "refugiados". Me parece uma distinção de classe (Ora, e por que não podemos fazer essa distinção? Claro que pode, leitor, e eu posso seguir com minhas conjecturas e suposições acerca do assunto).
Penso que essa distinção acaba por não representar muita coisa, tanto para aqueles que você deixou no país de origem, quanto para os seus novos anfitriões. Talvez tenha significado mais forte dentro do seleto grupo de pessoas que viam a necessidade de se marcar essa diferença. Veja, você migrou. Por vezes veio com um esposo ou esposa, e com filhos. O seu contrato de trabalho por tempo determinado pode virar um contrato permanente, ou seja, a sua relação com o novo país, bem como a dos que dependem de você acaba sendo indeterminada. Sua esposa ou esposo terão que fazer algo no país, se não quiserem sofrer de um sentimento de inutilidade profundo. Enquanto aquele que é o motivo da imigração vai trabalhar, ou estudar, cumprindo suas tarefas e planos de vida, os acompanhantes tiveram, via de regra, que se replanejar, quando isso se fez possível. Muitas horas de solidão e reflexão se passarão até que esse estado de coisas mude para o acompanhante, e ele consiga uma vida própria no país.
E os filhos? Ah, "criança se adapta"? Os filhos, por não terem condições de fazer diferente ou mesmo de dizer "não", simplesmente migram com os pais. No processo, deixaram vida social, avós, tios, primos, descobrem-se num novo mundo, numa nova escola em que a língua lhes é muitas vezes hostil e, para sobreviverem, terão que se adaptar. É um processo complexo, que às vezes compromete até mesmo o aprendizado da língua "materna". Voltar, se e quando isto estiver em questão, será uma outra ruptura (Sobre crianças e língua de herança, pretendo retornar em outro post e expor  um pouco da minha vivência como professor de português para filhos de lusófonos).
Falando do "Imigrante", aquele que migrou de fora para dentro do país, é termo que, ao menos no português brasileiro, está envolto em uma mística. Novamente, carrega uma distinção de classe, pois no Brasil temos a ideia de que estas pessoas foram "convidadas" a integrarem a mão de obra das fazendas e depois das fábricas nascentes, isto sendo justificado por supostamente ser a mão de obra "brasileira", "menos eficaz" - hoje sabemos que tratou-se de um processo deliberado de branqueamento da população negra marginalizada brasileira, seguindo lógicas eugenistas em voga na academia europeia. No Brasil, as epopeias das diversas comunidades imigrantes ainda são, em geral, mais valorizadas do que as raízes brasileiras e africanas da nossa população mais pobre.
Talvez o termo mais complexo aqui seja "Exilado". O "exilado" é um "migrante"? Sem dúvida. O "expatriado" é um "exilado"? Não vejo como não sê-lo. O exílio tem, a princípio, uma conotação política forte. São aqueles que foram mandados embora da terra. Significa, etimologicamente, exatamente o mesmo que "expatriado": "Desterrado". No entanto, pelo uso comum, foi "exilado" aquele a quem o governo convidou a se retirar. Ele perdeu sua nação e o direito de nela viver. É uma violência política que priva o ser humano do que há de mais básico, pátria e cidadania - embora muitas nações cultivem não-cidadãos dentro de suas próprias fronteiras, tratando-os como seres de segunda categoria. Muitos, mesmo sendo cidadãos no papel, não o são na prática, posto que seus direitos não existem para além da lei escrita.
Ocorre que eu posso me auto-exilar, e é isto o que fez um expatriado. Ele optou por não viver mais em uma sociedade que, de alguma forma, o limitava. No entanto, ele respirava essa sociedade. Fora dela, ele poderá fingir por algum tempo que é uma outra coisa, justificar que "veio de outro berço", que tem desejos próprios, distintos da massa de seu país... Em dado momento, se imaginará adaptado, quase como um local. Mas tremerá, sempre, ainda que baixinho, ao som de uma cuíca.
Penso que nós, eu e minha família, nos auto-impusemos um exílio. Não sabemos quando e se vamos voltar. Nosso país não nos mandou diretamente para fora, mas nossos sonhos, aquilo que acreditávamos que um dia poderíamos ser, parecia ser muito mais difícil de se cumprir no Brasil, em especial após o golpe de 2016. Não sei se nos realizaremos aqui. Mas há, ao que parece, um espaço maior para o sonho. Se esse espaço existisse no Brasil, não creio que teríamos vindo para a Finlândia.
Quanto ao termo "refugiado", é também uma palavra com conotação política... e bem atual. Refugiado é quem buscou refúgio, pois não tinha as condições, em sua terra natal, de viver dignamente. Acredito que esta linha seja bastante difícil de traçar, quando sua vida perdeu certa dignidade. Nos acostumamos com tudo, até com a perda de um membro do corpo. Talvez quando um brasileiro ou brasileira aceita se casar e se mudar com um finlandês ou finlandesa, apesar da língua e da diferença cultural abismal, eles não são considerados refugiados. Mesmo muitas vezes terem vindo, muitas vezes, de regiões do Brasil onde a vida pode ser intolerável. Talvez nós buscássemos refúgio de certas oscilações em nossa vida.  Refugiar-se também pode ser correr antes da tempestade, ou antes do intolerável.
A minha conclusão é que migrar, por mais que seja algo que o ser humano faz desde o início dos tempos, não é preciso. Pelo contrário, é um mergulho no desconhecido.