domingo, 17 de novembro de 2019

Uma identidade adormecida em Kontula

Centro de Kontula, em Helsinque. - Fonte: Wikipidia

Voltando do trabalho, atravesso os 500 metros que separam o metrô de Kontula, o bairro de Helsinque em que vivo, da minha casa. Kontula é um ostoskeskus, um centro de compras, com algumas lojas, mercados, restaurantes e bares, muitos bares. É quase um vilarejo, no subúrbio de Helsinque, e foi um dos primeiros destinos de imigrações na Finlândia, nos anos 70-80.

Ninguém me conhece em Kontula, ou ao menos raramente me cumprimentam. Eu já tentei fazer isso, do jeito que eu fazia nos bairros em que morei em São Paulo... mas aqui parece meio fora de propósito. Velhos amigos ou colegas de bar se cumprimentam. Um ou outro vizinho o cumprimenta com um aceno rápido. Atendentes de loja serão sempre simpáticos com você, mas nada mais. Em Kontula há várias "tribos": Finlandeses, Somalis, Russos, Romas, Iraquianos, os frequentadores do Pub X, do restaurante Y, os bêbados recorrentes... Mas eu não pertenço a nenhuma, e não sei se isso ocorre por que sou mais fechado aqui, ou se porque ninguém está nem ai. Sim, Iraquianos falam árabe, e eu falo algum árabe, portanto deveria haver alguma afinidade, certo? Nem sempre.

Em São Paulo, cresci dentro da "colônia" árabe paulistana, que até os anos 1990 era ainda majoritariamente Sírio-Libanesa e cristã, cenário que começa a mudar após a guerra civil libanesa (1975-1990). Mas em Kontula os árabes são outros. Em Kontula, eu sou outro. Se em São Paulo falar um pouco de árabe coloca você automaticamente dentro da comunidade Sírio-Libanesa, aqui em Helsinki, perante os falantes de árabe que conheci, isto me coloca como "outro". Eu sou um árabe que fala pouco árabe (e com sotaque do Líbano, pelo que me dizem), de origem cristã, que come falafel com tahine e não com molho de tomate... enfim, não sou o que se espera de um árabe por aqui.

Como dizia, eu voltava do trabalho, quando vi um comércio aberto, a barbearia de um iraquiano. Estamos no meio do Outono, e já está escuro. A barbearia está iluminada, o dono está de pé, e seus funcionários ao redor. Eu nunca havia visto aquele homem sorrir, muito menos me cumprimentar, apesar de eu passar em frente a ele todos os dias. Naquele dia, ele também não me cumprimentou, mas estava sorrindo. Contava algo, e parecia estar sendo admirado pelos que estavam ao seu redor. Isso me levou ao passado, imediatamente. A sensação de já ter visto a cena foi fortíssima. Meu pai, em sua loja, rodeado de pessoas que o ouviam falar. Excelente vendedor, excelente conselheiro, excelente pensador político... mas péssimo administrador - meu pai teve loja por três vezes. Suas lojas eram pontos de encontro de colegas, correligionários e outros que gostavam de ouvir-lo, o velho Hanna falar. Quem o ouvia se admirava com sua erudição, com a forma segura de colocar sua opinião. E seu rosto se iluminava, quando rodeado de pessoas, nem sempre seus amigos, mas sempre admiradores. Com o passar do tempo, aqueles que prestaram bastante atenção a seus conselhos comerciais foram em geral bem sucedidos, e seus negócios prosperaram. Eu prestei atenção, mas para fazer o oposto. Afinal, ele era meu pai, e eu tinha que provar que ele estava errado. Dediquei boa parte da minha juventude a esse fim. Não, ele não estava errado. Só que nem eu, nem ele queríamos a vida de quem "dá certo" no comércio. Não parecia a vida certa. Eu fiquei com outros ensinamentos dele, penso.

Voltei para casa com a viagem no tempo ainda em minha cabeça. Um tempo em que eu tinha mais certezas. Identidade? Filho de sírio (portanto imigrante, portanto um "brasileiro diferenciado" e por isso olhado com alguma admiração, algo exótico, "olha ele fala árabe", "olha as comidas que ele faz", "olha como ele conhece coisas do Oriente Médio"...  Edward Said, o pai do conceito de Orientalismo, nos ensina que o Oriente é uma invenção do Ocidente, é uma leitura ocidental sobre um povo que se quer controlar, que se quer colocar numa caixinha. O Orientalismo do olhar ocidental rotula o árabe como exótico, misterioso, nos diz que os homens são insinuantes com sua fala mansa, mulheres são sensuais e fazem a dança "do ventre", ou seja, da fertilidade... o cheiro de almíscar, os tecidos,  a bebida de anis, café com cardamomo e a pimenta síria - sim, algumas partes dessas projeções são até reais, mas o modo como são lidas pelo Ocidente é hiper-realista. Assim como a visão internacional do brasileiro alegre, bola na mão, samba no pé, caipirinha, praia, suor, feijoada... Enquanto não somos ameaça, somos desejo. Quando somos ameaça e desejo, somos desejo de morte. Mas sempre, sempre, somos projeções.

Faz algum tempo, desde que mudamos para Helsinque eu e minha família, que comecei a perceber que eu não preenchia o local social do árabe daqui... que é muito diferente do que eu entendia por "árabe" no Brasil - porque os árabes não são todos iguais, porque os tempos são outros e não são tempos de paz para os árabes (e sim, antes do 11/9 vivemos períodos longos em paz), porque o Brasil, com todos os seus problemas é um país que estabelece menos regras para aceitar um imigrante do que a Finlândia...

Também não sinto que preencho os requisitos básicos para ser lido na Finlândia como brasileiro - fora o domínio da língua. Não danço samba, forró, não gosto e nem entendo de futebol, não ensino capoeira, não tenho o corpo sarado, não conheço a Amazônia e fui pouco ao Nordeste, venho de uma cidade que tem quase três vezes a população da Finlândia inteira... e talvez aqui eu tenha resumido o estereótipo do "povo alegre e malemolente". Na Finlândia eu leciono português, mas esta não é minha primeira língua. Eu aprendi primeiro o árabe, e esqueci o árabe, e reaprendi parcialmente o árabe. De certa forma, por recomendações médicas, o aprendizado do árabe me foi negado, pois eu estava sendo alfabetizado em português e, supostamente, eu estava ficando gago por conta da sobreposição de línguas. A língua materna que eu mais aprendi foi o português, mas o árabe veio antes, parcial, em blocos não contínuos, fragmentado como as informações recuperadas de um disco de computador danificado. Mas aqui, sou lido como brasileiro, e essa leitura por vezes é turva. "É o melhor que dá pra fazer, chefia", diria um grande amigo meu. Eu tenho um emprego como professor de português, e amigos brasileiros que me dão algum senso de pertencimento. Mas é estranho, deixar uma identidade para trás, ou adormecida.

Podem achar que eu exagero, com a ideia de identidade adormecida/deixada para trás. Mas realmente acho que a sociedade finlandesa exige dos imigrantes, num acordo não explícito, uma versão suavizada de você mesmo. Em maior ou menor grau, todas as sociedades buscarão aculturar seus imigrantes. Mas penso que o Brasil deu, aos imigrantes que vieram antes dos meus pais, muita liberdade e oportunidades, exigindo menos em troca. Ser árabe no Brasil para mim, em certo sentido, foi muito fácil! Os primeiros sírio-libaneses abriram espaço e ascenderam socialmente, desfrutaram dos privilégios de serem "brancos" (ah sim, no Brasil árabes são brancos, mas na Europa... bem, são árabes, então não são brancos. Ser branco definitivamente não é só sobre a cor, e é muito comum brasileiros se chocarem - ou mesmo se ofenderem - ao não serem lidos como brancos fora do Brasil), construíram instituições como clubes, hospitais... fincaram o pé na terra. Em boa parte do território brasileiro, árabe é sinônimo de pessoa rica, bem sucedida, são comerciantes, médicos, políticos. Não de refugiados que perderam tudo. Em português do Brasil, ser imigrante é um valor maior para muitos do que ser da terra, algo difícil de entender, e mais ainda de explicar. Imigrantes são, para o mito fundador brasileiro, o povo convidado (por D. Pedro II, que visitou o Oriente Médio e Europa com este fim) a compor a malha social do país, ainda que os descendentes daqueles que se aventuraram ao exílio tenham se esquecido de que seus avós só emigraram de suas terras de origem por terem sido expulsos por alguém ou por problemas outros, diversos. Falei um pouco mais sobre a diferença entre imigrantes e refugiados aqui.

Mas há outra razão, que me remete à lojinha novamente: No Brasil em que cresci eu era filho, e estava sob a proteção da família. Ninguém me protegeu mais que meu pai, do contato tortuoso com o mundo, e ele o fez sem críticas - ele me criticava em muitas coisas, mas não quando o assunto era minha inadequação. Quando eu me sentia inadequado ao mundo em que me encontrava, ele ouvia e dava suporte e buscava me mostrar a naturalidade das coisas. Penso que ele tentava me proteger, da minha autodestruição, mas também do mundo ao redor. Ele dizia para eu não me preocupar, que as coisas caminhavam dentro do esperado. Sempre. Mesmo quando eu sabia que não era verdade. O que eu senti naquele dia em que passava em frente à lojinha foi que aterrissamos na Finlândia em queda livre, sem paraquedas, sem amortecimento, sem colchão, sem suporte de pai ou mãe que amenize o que há para ser amenizado. Contamos com a ajuda de muitos amigos, e amizade no exterior é algo que requer um texto dedicado. E temos uns aos outros, eu minha parceira e minha filha, mas agora eu sou o pai e o marido, minha filha começa a experimentar sua independência. Viemos ocupar outras identidades, outros locais sociais, diferentes daquelas que deixamos no Brasil.

E o que é a identidade? Nem sempre a identidade que esperamos ocupar é a que nos é oferecida pelo país que nos acolhe. Normalmente, o espaço que se quer encontra-se ocupado, ou é disputado com aqueles que já estavam lá. Em outras palavras, é mais fácil para um imigrante ingressar nos serviços  - de saúde, de limpeza, de turismo e atendimento - do que ser professor universitário ou acadêmico, por exemplo. Isto não quer dizer que não haja possibilidade de se realizarem seus desejos, mas que a sociedade vai direcioná-lo para os trabalhos mais necessários ao seu funcionamento, enquanto que as disputas pelos trabalhos mais desejados ou valorizados poderá ou não ser justa - ou "justiça" é um termo relativo. Diferente do que se imagina, o nacionalismo enquanto tradição europeia está muito mais arraigado por entre o senso comum do que se quer acreditar. Pessoas que se veem como progressistas e defensoras de coisas como "fim das fronteiras" e "integração dos povos" muitas vezes têm um senso de nacionalidade bastante exacerbado. Estudiosos procuram explicações, como neste artigo sobre a substituição do Estado de bem estar social pela marca nórdica.

Eu reluto em abandonar quem eu era, minha identidade de filho de imigrantes no Brasil, onde imigrantes são adorados, onde imigrantes ensinam a seus filhos que eles não são daquela terra que foram convidados a formar, mas de outro lugar para onde um dia hão de retornar. Eu reluto em deixar de lado, adormecida, uma identidade de forma alguma resolvida, para sobrepor outra. Aos 16, costumava fantasiar como minha vida seria aos 30 ou 40. Tenho 49, e embora me veja como uma pessoa que gosta de um desafio, há uma parte de mim que clama por estabilidade, do tipo "tenho todos os amigos de que necessito". Disseram-me que finlandeses eram assim, faziam suas amizades na escola e as levavam para a vida. Estável. Mas eu sinto que tenho que me misturar, e o que me impede é quem eu penso ser. Quem eu penso que sou?



4 comentários:

disse...

Ah, você é tão lindo! Adorei!

Unknown disse...

Muito expressivo, refletindo a solidão e a necessidade de pertinência do humano, seja no Brasil, na Finlândia ou no Crescente Fertil

Lefa disse...

Tu é muito humano.
E isso em 2019, isso nessa Finlândia, é maravilhoso.

Daniela Tomei disse...

Muito tocante seu texto! Você passou muito claramente seus sentimentos para quem está lendo. Ainda que muito pessoal, acredito que traduza o sentimentos de tantos outros imigrantes. Filho de peixe é o que mesmo?” Quem o ouvia se admirava com sua erudição, com a forma segura de colocar sua opinião. E seu rosto se iluminava, quando rodeado de pessoas, nem sempre seus amigos, mas sempre admiradores. “ Que bom que estive em Kontula com vocês!