quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Yourghaki Georges Fahd

Yourghaki Fahd nasceu, provavelmente, em 1924, na cidade de Inghzik, hoje chamada de Gassanieh, na Síria. Ainda jovem, ele e sua família, de origem cristã ortodoxa, mudam-se para Latakia, ou Latquie, no litoral Sírio e bem próximo ao Líbano. Prestando serviço militar obrigatório no exército francês, Yourghaki transfere-se para Beirute - Líbano; conhece Laurice, que é sua prima de segundo grau e casam-se. Foi alfaiate de alta costura e militante político. Em 1958, teve que fugir do Líbano e não podia ficar na Síria, pois seu partido político havia sido proibido em ambos os países, então resolveu migrar para o Brasil, deixando Laurice com três filhos, a quem mandaria buscar depois. Vai para Governador Valadares encontrar-se com um amigo que sabia que poderia ajudá-lo a se manter e estabelecer. Onze meses depois, em 1959, Laurice migra para o Brasil com Claude, Suria e Saad, acompanhada de sua irmã mais nova Alice, que posteriormente regressaria à Beirute. 
No Brasil, o nome Yourghaki, de origem grega, acabou sendo traduzido na documentação, ficando Yourghaki Georges Fahd. Dai em diante, seria conhecido como Seu Georges, ou Seu Jorge. 
Moraram todos em São Vicente.  A família aumenta, nasce a caçula Aliçar. Ficam no litoral paulista até o final da década de 1960, quando então mudam-se, para São Paulo, e por mais de uma década moram no Bairro do Pari e na Vila Guilherme. Yourghaki era um trabalhador incansável. Teve loja na Rua Oriente por muitos anos, onde cortava e costurava os próprios modelos que vendia. Mas também comercializava produtos de fabricantes maiores do Brás. Pegava amostras de calças, shorts, blusas e levava para a Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, ou Petrópolis, onde teve "freguesia" até a aposentadoria. Ia algumas vezes para lá de carro, e voltava com um engradado de cerveja Bohemia. 
Sua casa foi sempre cheia, sempre ponto de encontro de amigos, companheiros de partido e família. Laurice aprendeu cedo a cozinhar, principalmente porque tinha em casa um homem extremamente exigente com a comida. Se almoçava em casa ou na rua, sempre tomava um drinque antes, podia ser até mesmo um rabo-de-galo. Mas, quando podia pagar, e trabalhou bastante para poder fazer muito isso, preferia um uísque. E uma soneca depois do almoço. Em meados da década de oitenta, mudam-se para uma casa própria no Planalto Paulista.
Yourghaki era um homem orgulhoso, extremamente vaidoso e sempre bem vestido com ternos sob medida, que cultivava uma rotina rígida, herdada talvez de sua vida militar ou de seus pais, dos quais falava pouco. Sua família estendida foi formada por dois genros sem familiares no Brasil (um deles meu pai), um terceiro falecido muito cedo, e uma nora que também já havia perdido os pais. Desta forma, foi criado seu pequeno patriarcado, com a mesa sempre cheia de filhos e suas famílias.  Estendia a rigidez no trato com todos. Porém tinha grande senso de humor, e gostava de aconselhar as pessoas. Sempre contava piadas ou "causos", e perguntava a mim ou ao meu irmão "quantas namoradas você tem? Só uma? Coitadinho!". Era praxe que ele iniciasse as crianças, ou bebês, com pequenos goles ou mesmo gotas de sua bebida, o que deixava as mulheres da casa malucas. Quando marquei a data do meu casamento, ele chegou ao meu ouvido e disse: "Eu tenho raiva de quem casou antes de mim, e tenho raiva de quem casou depois de mim". Eu perguntei o porquê, e ele respondeu: "Quem casou antes de mim, não me avisou; quem casou depois de mim, não me perguntou"... Aliçar, sua filha caçula, lembrou-se de outra: Como é sabido, os muçulmanos acreditam que, quando morrerem, receberão de Deus um terreno no Jardim do Éden ou Paraíso. Então, quando ele visitava seus clientes muçulmanos, chegava dizendo "Oi, estou vendendo um terreno no Paraíso, está interessado?".
Eu tive um convívio com meu avô Yourghaki enquanto ele era muito ativo. Ele me colocava em seu colo, eu o ajudava a apertar o fumo do cachimbo, me ensinava gamão, xadrez, e conversávamos muito. Quando ele falava, usava um tom de dar conselho. Era católico, havia sido coroinha, mencionava a importância de se conhecer a religião, embora não fosse um frequentador assíduo da igreja. Curiosamente, ele falava pouco da Síria, do Líbano. Ele quis voltar por muito tempo, e não encontrou oportunidade. Em 1986, fui à Síria e levei uma carta para seu irmão Abdallah, que veio a falecer pouco tempo depois. Em 1995 fez a única viagem à Síria e ao Líbano, com minha avó. Retornou ao Brasil, e creio que não teve mais a ambição de ir para lá. Havia estabelecido sua vida aqui no Brasil. Naturalizou-se brasileiro, ele e toda a família, diferentemente do meu pai, que viveu como sírio residente no Brasil até a morte.
Yourghaki isolou-se em sua velhice, que chegou acompanhada de uma surdez que ele relutou em tratar e agravou-se. Nesse período, a comunicação com os outros ficou bastante comprometida. Ele lia seus livros em árabe, livros que trocava com amigos, com meu pai,, almoçava sempre por volta das 13h e jogava baralho, religiosamente às 18h, de preferência ele e minha avó Laurice contra outra dupla. Precisava jogar tranca, precisava ganhar. Quando fazia dupla com alguém, era quase certo que culparia essa alguém caso perdesse a partida. 

Sua saúde, sempre invejável, ao menos até os últimos anos, fez com que ele visse vários amigos - e companheiros de tranca - partirem, e então começou a dizer coisas como: "o que fiz para Deus, para que ele me esquecesse aqui? Já deu o meu tempo!". A idade exata dele não era sabida, por perda de documentação, mas assumimos que ele nasceu em 1924 e adotamos a data da fundação do partido dele como a do aniversário, 16 de novembro. Em seu velório, dezenas de amigos vieram prestar homenagens. Seu Jorge era um ícone de um homem que migrou com sua cultura e seu modo de ver a vida, venceu batalhas, mas sua luta era para ficar, para se estabelecer, e não voltar mais. Rompeu, ao menos em parte, com o passado, para poder ter um futuro, pois de outra forma talvez isso não fosse possível. As saudades que sentiremos refletem a falta que esse homem fará nas nossas vidas, mas também a falta de um símbolo de união familiar que combateu inúmeras adversidades até chegar aonde chegou. Seremos fortes como ele? Seremos fortes sem ele? 

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