domingo, 20 de outubro de 2019

Imigrantes e a Interdimensionalidade

Fonte: Arquivo pessoal -  Neste barco estava minha avó materna, Laurice deixa o Líbano em 1958, 
acompanhada da irmã, minha mãe  e seus irmãos, para encontrar meu avô Yourghaki no Brasil.
As pessoas olham para os imigrantes como viajantes, como pessoas que vieram, ou que foram, ou que voltarão um dia. Algumas olham e projetam a vida no exílio como uma eterna viagem de férias, revestido de um glamour que definitivamente não existe, a não ser quando você odeia seu próprio país ou a sua própria vida. Penso que são definições equivocadas. Mais correto seria dizer que somos viajantes interdimensionais. Imigrantes nunca, nunca deixamos a terra natal, pois ela não sai de nós. Mas aramos uma nova terra, com as sementes contrabandeadas da velha terra. Criamos, no novo mundo, uma casa nova, feita com as memórias das velhas casas em que vivemos no outro mundo. Tentamos ensinar aos outros, o tempo todo, qual é, de fato, a correta compreensão do nosso mundo natal. O tempo todo. Nunca deixamos de estar na terra Natal, e nem nos mudamos completamente tão facilmente, se é que um dia chegamos a fazê-lo. Não é uma ruptura completa, é mais uma sobreposição de presenças.
O problema, que a física explica em sua lei de conservação de energia, é que a energia tende a se conservar, em um dado sistema. Assim, a energia de um ser que migra não é suficiente para acompanhar a evolução da terra que se deixou para trás, e por vezes não é forte o bastante para criar raízes profundas o suficiente na nova terra. Por mais que nos estiquemos, por mais que nos esforcemos, não seremos iguais aos que ficaram quando partimos, nem aos que já estavam quando chegamos. Somos o intermezzo, pertencemos ao interregno, somos ambos, mas sentimos por vezes que não somos mais nada. Somos seres diaspóricos, e portanto o nosso lar não é uma questão de "onde" apenas, mas também de "quando". E, pelo que sabemos, voltar no tempo não é possível ainda.
Ao meu ver, o melhor papel de um ser da diáspora, e talvez o único papel que de fato unirá suas moléculas dispersas por tantos vendavais, ou ao menos dará sentido a elas, é o de tradutor de mundos. São os que migram, aqueles que podem explicar sentidos  e sentimentos que os povos estáticos não têm condição de sentir. Traduzir implica em explicar aos que ficaram o porquê de sua partida, e aos que já estavam, o porquê de sua chegada. Traduzir significa também entender essas coisas, entender como você é visto e como você se vê nos mundos que co-habita. É da tradução que vem a paz, que vem a certeza de que o outro não é um bárbaro que não pode ser aceito e compreendido. A tradução é uma correspondência de civilidades, e o tradutor é quase um juiz, deve ser o mais neutro possível, para não influir demais na tradução. O viajante interdimensional quase não está lá.

3 comentários:

disse...

Amei!

Rita Palini disse...

Lindo, Babel!!! Mas e quando a gente se sente um imigrante em seu próprio país?? Um ser sem muita aderência à própria história??? Do que chamar isso?????

Babel Hajjar disse...

Rita Palini, não sabia que você se sentia assim, mas há que se diferir a aderência à própria história com as escolhas. Um imigrante não tem muita escolha, no fato de ter nascido em outro lugar. No entanto, nosso país tem o hábito de fazer distinções de classe tão profundamente marcadas, que o contato entre classes, não apenas no aspecto financeiro, mas no que concerne ao cultural, pode ser chocante e levar a pessoa à alienação, à ideia de não pertencer. A desigualdade a brasileira aliada ao tamanho do país e a diversidade do regionalismo, transforma todos os brasileiros que circulam em migrantes no sentido que falei. Por exemplo, nossos pais fazem um esforço sobre-humano para nos colocar num colégio que supostamente nos dará um diferencial, e isso gera o convívio de pessoas vindas de realidades super diferentes... e que se tornarão adultos muito diferentes... não sei se captei o que você menciona.