quarta-feira, 13 de março de 2013

A Terra Natal


Os últimos serão os primeiros, diz algum trecho de algum texto santo que não pretendo ler novamente. Os últimos dez anos foram o fim de uma fase. Ok, quaisquer períodos são início e fim de qualquer coisa, neste mundo hiperpopuloso. Mas que catzo, o blog, abandonado ou não, é meu, e eu estou falando dos MEUS últimos dez anos. Eles excruciaram uma parte das minhas crenças, com as quais eu pensava formar um caráter inabalável, o MEU caráter inabalável. Que era vidro e se quebrou. Um cara analógico num mundo digital? Eu nunca pensei que fosse, mas as âncoras que prendiam minha segurança eram assim, âncoras, feitas de ferro fundido, correntes, ganchos que se enfiavam sob pedras submersas há um porrilhão de anos. Um barco a deriva, um grande bote sem remos, flotando, flanando, captando como antena todas as ondas, e ameaçando, sem segurança, mudar de direção. Um bote flutuando numa piscina do tamanho do Atlântico, sem a possível ideia de qual direção tomar. Até ai, beleza, a maioria é assim, por mais que a fachada seja de pedra, o telhado é de vidro. Adoro ver poços de segurança perderem o rebolado nas intempéries ou nos acidentes, que nos lembram que somos feitos de carne, a mesma merda de que é feita a vaca que morre no seu prato ou o pulguento travestido de brinquedo que servirá de alegria da casa quando seus filhos forem cuidar de seus narizes e o sexo for mais esporádico ainda, quando não inexistente.

Quase todo este blog sempre volta a dois momentos, as duas mortes do meu pai. A primeira, aos meus 24 anos, quando ele saiu pela porta tentando se encontrar, tentando voltar a se reconhecer e, de certa forma, morreu simbolicamente, talvez para mim enquanto porto seguro, talvez para ele mesmo, com sua imagem de líder da família; a segunda, quando ele fisicamente morreu, e ai tive a certeza de que estaria a deriva até descobrir um modo de navegar sozinho.

Um cara analógico? Ah, sim, por mais que eu relute, todos os meus símbolos eram analógicos, o despertador, o vinil e a campainha. Sempre fui o neófilo, sempre tivemos acesso ao novo, gadgets que nos faziam felizes. Videotexto no MSX, pouca gente vai saber do que falo. Mesmo assim, meus signos eram o neon e seu brilho químico; o carro sem cinto (e a liberdade análoga); a fita cassete e sua linearidade narrativa e autoral, sem random, shuffle ou repeat, mesmo que construída de fragmentos de outros autores; e a terra natal.

De todos os símbolos acima, e de outros que não listo agora, a terra natal foi o que mais morreu. A terra natal era única. Seu cheiro não era globalizável. Sua estrutura era de difícil cópia. Seus produtos eram únicos. Suas memórias eram inabaláveis. A terra natal era a possibilidade de voltar e de, em voltando, sentir. E de, em sentindo, se re-conectar, se re-fortalecer. O universo analógico tinha dessas coisas. O vocabulário digital chapou tudo. A melhor fábrica de quase qualquer coisa fica na China. Duendes de um dólar por dia ou menos dão vazão aos desejos de todos os bilhões de humanos, ou aos desejos dos milhões que podem pagar para ter e, portanto, ser. O passado não é mais algo de museu ou de colecionadores, ele vem revigorado e desperta lembranças e amores colegiais agora, numa rede social qualquer. Agora, e já, ela acessa o seu look anos 80 e o carinha que a paquerava, e o professor que odiava, e a miséria ou alegria que era viver na casa em que  vivia, com quem vivia. Em um segundo, as memórias estão ai, e trazem as emoções consigo. A terra natal era o momento de abrir a caixa de fotos, o ouvir a história do avô, mesmo que repetida, o sorver da sopa de amor servida no inverno aconchegante. A terra natal foi trocada pelo desapego.

Não quero misturar tudo, mas acho que não haverá outro jeito, pois tudo hoje veio misturado: A minha teoria é a de que a terra natal não morreu ainda, apenas e tão somente porque é um sensacional argumento de vendas. É "A" promessa de felicidade aos moldes de quando você era bebê e alguém corria para evitar que você caísse ou enfiasse os dedos na tomada. "#tamojunto", conectividade, rede, amor e chocolates. Sempre o aconchego como promessa. Mas, se o novo mundo matou a terra natal, onde buscar esse aconchego? E, mais do que isso, a terra natal era a terra de pais despóticos, mães submissas, direitismo político, casamento arranjado entre aqueles de mesma religião e etnia, e homofobia, ou melhor, homossexualidade "nem existia". O lar do aconchego, onde os negócios passavam de pai pra filho e as mães ensinavam a cozinhar e a cerzir, não suportava as mudanças, posto justamente que estas destruíam o cerne, a alma daquilo a que estou chamando terra natal.

Haverá "permacultura" onde tudo isso caiba na mesma caixa?

Sim, no admirável mundo novo, onde cada ser humano é uma ilha com liberdades que a velha vila e seus preconceitos não permitiam, tentamos criar nossas novas famílias, buscando ressignificar e fazer ressurgir assim a terra natal. Perdemos muito do tradicional e milenarmente humano: desenraizamos, não lidamos mais com a terra e seus frutos, e por isso dependemos excessivamente daquele meio de subsistência, sub existência, chamado trabalho/emprego; os ritos do clã foram quebrados, e a palavra confiança, no sentido daquela realidade da velha vila, não existe da mesma forma; os velhos signos de poder foram-se embora, mas com eles fragilizaram-se algumas questões éticas e morais, uma vez que não há compromisso profundo entre o Eu e a velha vila ou terra natal. Pelo contrário, há a América, a terra das oportunidades, onde o empenho pessoal e desmedido levará ao sucesso individual. E escolheremos alguns amigos para partilhar tal sucesso.

Mas, ao proclamarmos a máxima "amigos são a família que escolhemos", esquecemos de lembrar que os laços são mais etéreos, na maior parte dos casos. Ainda estamos engatinhando nessa terra nova, que vem substituir a terra natal, e sua construção de significados, e a chance de recriarmos réplicas mal feitas daquilo que vivemos é enorme.

Não vou fazer isso de fechar este texto com a conformista frase "a terra natal está dentro de nós". Não posso, pois dizer isso é ser mais cristão do que sou, admitindo que o lado negativo da desconstrução possa ficar impune. Mas acho que sim, está lá dentro de cada um, como modelo de certo e de errado. Em algum momento resgataremos esse molde e aplicaremos em outra coisa, atribuindo assim o sentido de resgate, recarga, religação. Por hora, tudo o que podemos fazer é dormir com um olho aberto, pois estamos em guerra, a velha vila está lutando pelo direito de existir.

Um comentário:

disse...

Suas palavras me emocionam! Amo você!!!