quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Jogo do Contrário ou O Terrorista Malévolo no Mali e o Herói Rebelde na Síria são a mesma pessoa?



Postagem Original 18/01/2013
Por Babel Hajjar
Grupo de Estudos Geopolíticos do Oriente Médio
Grupo de Pesquisa em Psicologia Política e Multiculturalismo da EACH-USP


Daqui para frente, os videogames serão cada vez mais complicados, ao menos aqueles cujos temas sejam relativos ao Oriente Médio (como foi o caso do videogame sobre o atual conflito na Síria que foi rejeitado pela Apple, noticiado em http://rt.com/news/apple-rejects-endgame-syria-644/). Imagine seu avatar (o personagem que você “veste” em um jogo) sendo um Inglês, como o 007 James Bond, com acesso a armamentos variados e habilidades como escalar prédios e saltar entre telhados. Você dá início a sua busca por terroristas islâmicos no Mali, onde ocidentais da indústria de exploração de gás foram feitos reféns por grupos ligados à Al Qaeda. Seu game identifica os agentes do terror. Se esse terrorista do Mali (ou NO Mali, já que sabemos que há enormes chances desse cara ter sido educado numa "Madrassi" islâmica fundamentalista da Arábia Saudita, do Catar, Bahrein ou outro califado ou emirado islâmico fundamentalista) resolve mudar sua "jihad" para a Síria, para por fim à vida do presidente Bashar Assad, bem como a sua etnia ou grupo religioso Alauita, ou aos cristãos, ou aos islâmicos de outras linhas que não a sua e de seu Alá...
Fosse esse o caso, o jogador, nosso Bond, ficaria completamente perdido. Pois o mesmo terrorista que cria o horror no Mali, cria o horror na Síria. Porém, neste último caso, o ocidente não se condói, porque a vida humana de sírios nada significa aos homens e mulheres ocidentais. "Eles sempre se explodiram", dirão os homens e mulheres do meu tempo, muito acostumados a uma ultrajante narrativa sobre o que é ser árabe/muçulmano/oriental (muito bem traduzida no excepcional "Orientalismo" de Edward Said), constantemente martelada pela mídia, quer sejam jornais, telejornais, revistas, cinema, videogames e qualquer outro veículo que sirva à criação de estereótipos sobre o ser humano que vive "naquelas regiões" (ou não-regiões, parafraseando o conceito de Zigmunt Bauman de não-lugar, o lugar que está fora de nosso mapa mental e que, portanto, não consideramos como “parte do trajeto” da nossa vida). O olhar ocidental, que se declara berço da civilização e que se arroga ser o único olhar verdadeiro capaz de entender e conceber o mundo, esse olhar derramará lágrimas pelos ocidentais que foram mortos ou feitos reféns no Mali. Mas quase não tomará ciência dos ataques à universidade de arquitetura e belas artes de Alepo, que levou a vida de mais de centena de estudantes, que ali realizavam as provas finais do período; ou às chacinas promovidas em praça pública contra sunitas que apoiam o governo atual sírio, sangrados até a morte ou mesmo decapitados com pequenas facas.
O olho do ocidente não ficará vermelho de raiva pelas mortes de pessoas de todas as etnias e religiões, que durante 50 anos conviveram harmoniosamente em um país que não viu, nesse período, nenhuma guerra dentro de seu território, fora a tomada das colinas do Golã por Israel em 1967. Muito pelo contrário, o olhar do Ocidente sobre a Síria e sobre aqueles que promovem o terror na Síria é apoiador, incentivador, reconhecedor. A França tem participado estrategicamente da guerra na Síria. A Turquia cedeu sua fronteira para a entrada de jihads que queiram combater na Síria. Os EUA forneceram, como sempre, armas; O Qatar comprou o Hamas, que traiu a Síria, o Irã e, possivelmente, minou fortemente a resistência laica palestina; a Arábia Saudita fornece a alma corrompida de seus zumbis islamitas, que nunca foram estimulados a raciocinar fora de uma visão completamente equivocada do islã e das palavras religiosas do Alcorão. O Ocidente cria a narrativa que quiser. Acaba com o Iraque em nome de armas de destruição em massa que não existiram, E com o Afeganistão em nome das torres gêmeas, e a Líbia em nome do "direito de proteger" seus próprios interesses. E agora chegou a vez da Síria. Chorem, ocidentais, pelo sangue daqueles a quem consideram humanos no Mali. Mas saibam que a Síria foi criadora e guardiã final de todas as culturas e ciências da antiguidade, que possibilitaram toda a história ocidental. A Síria ensinou a Europa a filosofar e a fazer aquedutos e álgebra. A Síria, reunindo saberes dos povos mais antigos, como Sumérios, Acádios, Assírios, Babilônicos, Elamitas, Egípcios antigos, Arameus, Filisteus e muitos outros, já possuía escrita, leis e irrigação enquanto a Europa ainda se vestia com peles de animais e se alimentava por meio de caça e extrativismo. Damasco, que hoje sofre com o terror de grupos islâmicos radicais cuja origem e crescimento foram estimulados pelo Ocidente, é a cidade de ocupação contínua mais antiga do mundo, talvez 6.000 anos, o que me permite repetir uma afirmação ouvida de um alto funcionário do governo sírio: todo ser humano possui duas nacionalidades: a sua, e a síria. 
O Ocidente ainda perceberá o quão pobres são suas narrativas sobre o mundo exterior, e consequentemente sobre seu próprio mundo. Perceberá que a autopromoção, o merchandising que faz sobre si mesmo e sobre seus feitos e seu estilo de vida, o discurso baseado em si mesmo, (o "Ethos" de Aristóteles) em algum momento não mais terá efeito. O produto “Ocidente”, da forma como o conhecemos, entrou no que os marqueteiros chamam de “declínio”. Cada vez menos comprado, ou então só é comprado por não possuir substituto. Mas tem muita gente pensando em como substituir os sistemas hegemônicos vigentes. Não é tarefa para hoje ou amanhã, mas em tempos de sustentabilidade, biodiversidade e seus desdobramentos, sabemos tratar-se de questão de tempo para um novo poder assumir. A Vida pode ser um videogame melhor.


Um comentário:

Anônimo disse...

Camarada Babel, eu até iria comentar na lista do GT, quando postastes esse comentário... excepcional... cada dia melhor... você esta virando um verdadeiro analista internacional... parabéns... abraços fragternais

Lejeune