quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Descer para a Cidade


Para dizer em árabe a alguém "vou ao centro da cidade", é bem comum se dizer "vou descer até o centro da cidade" (b´di inzol al balad) ... Não sei explicar isso. Sei apenas que o centro da cidade me leva a muitas memórias, e a muitos momentos com meu pai, avô, e aquele mundo de gente de todas as cores, raças e classes sociais misturadas.
"Descer para a cidade" para mim significava sair do mundo de casa, das mulheres, sair do papel de filho, e ir viver com meu pai o papel de provedor. Eu gostava da ideia, mas não sei se curtia muito a prática (e não sei dizer o quanto isso de fato mudou em mim até hoje). O fato é que isso, ser mais um na multidão, ir à rua, ver o que cada um fazia para ganhar sua vida, foi bem importante para mim. "Descer para a cidade" era sair da toca, deixar o ninho e ver um pouco da rudeza, cigarros fumados com cafés - em meio a brigas absurdas para ver quem pagava o café. Era saber que existia sacanagem, que o fulano traia a mulher com a balconista, que o sicrano deu um calote no irmão e ficou rico... Ainda, a cidade era uma escola de árabe, e de política árabe, e de comida árabe, de onde o marido trazia pão sírio, que não tinha em qualquer lugar, e outros pratos e temperos.
Hoje me lembrei de uma manifestação pró Palestina que ocorreu há anos na praça da Sé, e da qual participaram eu, meu pai, avô e tio. Me lembro que naquele dia me senti bem com o espírito que nos conduzia, e com o fato de estar participando daquele momento.
Também veio à minha mente um dia na rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, onde eu ia nas férias de dezembro com meu pai, e eu era um garoto muito na defensiva, achava que mexeriam comigo na rua pelo meu peso (sim, caros internautas, eu sou um cara grandinho, desde criança), e andava olhando o chão, sem estabelecer contatos visuais, de mãos fechadas, a passos largos. Meu pai me encontrou e me falou, com o olhar de quem cuida, para eu relaxar. Acho que nem percebi aquele dia quanto foi importante para mim esse toque, esse olhar. Ainda hoje, trinta anos depois daquele dia, quando ando pelo centro, verifico se estou de cabeça baixa ou de mãos fechadas, e tento curtir o que estou fazendo no momento, e tento me entregar, e descobri, antes tarde do que nunca, que é mágico fazer o que quer que seja com vontade, descer para cidade e curtir a cidade, e que muitas vezes é melhor do que fazer o que se deseja sem a devida atenção.

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