quarta-feira, 1 de julho de 2009

Vida no Brás

O comércio sempre foi a atividade relacionada ao imigrante árabe. Sim, italianos, judeus e coreanos também comerciam... Mas por várias décadas as regiões da Rua Oriente, no Brás, e a 25 de Março, próximo ao parque D. Pedro, no Centro, foram palcos de pequenos impérios erguidos por imigrantes de origem árabe.

Hanna Hajjar, meu pai, teve umas cinco lojas, quatro delas no Brás. A mais duradoura, acho, foi a da Rua Barão de Ladário, a Fafra Confecções, que deve o nome à junção das sílabas iniciais do antigo dono, FArid FRAncisco! Aliás, o nome das lojas no Brás merecia uma postagem a parte... O nome da minha avó é Laurice, pronunciando-se Loris. O nome da loja do meu avô era LORIS-TEX... (TEX de têxtil, embora fossem na maioria confecções). Como cresci no Brás, e sempre fui um leitor de placas obsessivo, achava muito divertidas as criações dos "brimos" e "primos".

O bairro do Brás conseguia juntar num mesmo bar os sírios, nordestinos diversos, japoneses, paulistanos da gema. Vi uma mistura grande de pessoas de origens diversas, muitas vezes de religiões, facções e partidos políticos completamente diferentes em seus países de origem, mas que se misturavam ao caldeirão brasileiro de identidades. A loja do meu pai, se não foi um negócio tranquilo e ao final bem sucedido para ele, foi sem dúvida um grande ponto de encontro dessas pessoas. Conheci figuras muito peculiares, como o Ceará, um rapaz de nome Wellington, sardento pela ascendência holandesa dos cearenses, que trabalhava no corte de tecidos, quando não estava no bar bebendo. Meu pai praticamente adotou o Ceará - o primeiro Ceará alcoólatra que ele adota, pois houve outro, muitos anos depois. Em determinado momento, ficou óbvio que o rapaz tinha problemas sérios com o álcool, mas mesmo assim meu pai não o demitia. Foram várias levas de funcionários e prestadores de serviços da Fafra. Havia uma senhora de uns 55 anos com cara de 70, que pedia ao meu pai trabalho, morava no famoso "balança, mas não cai" no parque D. Pedro, um edificio abandonado que foi sendo ocupado por todo tipo de gente, traficantes, prostitutas, drogados e miseráveis. Essa senhora chegava com um carrinho de feira, levava peças simples para costurar ou consertar, e trazia de volta sempre. Se havia muito serviço, ela levava e trazia todo dia sua máquina de costura e trabalhava na loja mesmo.

Um comércio de portas abertas permite que qualquer tipo de pessoa chegue até você. Algumas pessoas têm boa índole, outras não. Outras pessoas, apesar de boa índole, simplesmente não resistem à oportunidade de tirar vantagem. E o Brás era o paraíso desse tipo de oportunidade. O nível social importa muito pouco no comércio. Importa mais quem você conhece, quem conhece você, que grandes compradores te recebem, que grandes produtores soltam amostras na sua mão. Importa receber comissão pela compra e pela venda. Meu pai ficava com a vida mais estável quando comerciava do que quando tinha loja, pois esta tomava tempo e muito dinheiro, além de exigir competências administrativas que não eram do perfil do seu Hanna.

O comércio acaba tendo suas histórias, fulano deu um golpe na praça e agora está bem, sicrano ateou fogo no próprio negócio por conta do seguro, tal cara é o gerente da loja porque se casou com a filha feia do dono... e o outro foi assassinado porque estava envolvido com tráfico, a loja era só fachada... E em torno das histórias, o que existiam eram pessoas tentado sobreviver num Brasil de planos econômicos, inflação e turbulências - A Fafra foi uma metáfora da década de 80 para minha família, e o início para muitos imigrantes que conhecemos.
Levas migratórias ocorriam todo o tempo, desde a guerra civil libanesa, que terminou em 1982. Muitos abandonaram o Líbano em busca de uma vida menos atribulada. A Loja do meu pai era um misto de ponto de encontro, escola de comércio e centro de discussão de política árabe. Em meio a almoços coletivos improvisados, lá se reuniam sírios, libaneses, armênios (muitos armênios migraram para o Líbano, dentre outros países, após o massacre que a Armênia sofreu pelo império otomano entre 1915 e 1923, provocando uma grande diáspora no país. Eu me refiro aos descendentes destes que encontraram abrigo no Líbano, fugindo de lá após 82), palestinos, cristãos ortodoxos, maronitas, muçulmanos sunitas, drusos e xiitas, dentre outros. Lá eu vi um crente muçulmano sair para comprar o almoço e voltar com o que ele achava uma delícia, pão e mortadela. Dissemos a ele que mortadela era carne de porco, proibida portanto para a religião dele, mas ele dizia que não, que tinha certeza que era boi, enquanto dava mordidas grandes no sanduíche...

Nunca me vi como alguém do Brás. Eu estudava em um colégio que me fazia crer que um dia eu seria um profissional bem sucedido em outra área que não o comércio e suas pequenas trapaças, suas comissões não pagas, suas promessas não cumpridas. Demorei a perceber que isso não era o Brás, e sim o Brasil, e talvez boa parte do mundo institucionalizado. Vivemos uma grande trapaça no dia a dia, não importa a qual empresa, ordem, culto, orquestra ou partido político pertençamos. O comércio de interesses, pessoas, favores, prazeres, é o motivo, o motor. Seu Hanna me mostrava os tipos de pessoas que viviam no comércio, as que ele admirava, as que ele rejeitava, as que ele usava e as que o usavam. Estar lá não o incomodava, apesar de às vezes ele dizer o contrário, e apesar do pouco valor que na verdade ele dava ao dinheiro, apesar de enaltecê-lo. Infelizmente, acredito que, provavelmente sem perceber, ele tenha me ensinado a temer o dinheiro, ao mesmo tempo em que me ensinou a enxergar as pessoas. A equação do frio homem de negócios, que ele tanto repetiu para mim, não fazia realmente sentido para ele.

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